Stanislav Grof: consciência sem limites

Seu estudo da psique desvendou espaços interiores jamais explorados pela ciência, confirmou ensinamentos das grandes tradições espirituais e ajudou milhares de indivíduos a superar seus traumas e encontrar a saúde e a autorrealização.

 

“Há um espetáculo maior do que o mar: o céu. Existe um espetáculo ainda maior do que o céu: o interior da alma humana”: estas palavras, de Victor Hugo, bem que poderiam servir de epígrafe para a obra de Stanislav Grof. Cientista genial, esse psiquiatra tcheco, nascido em Praga em 1931 e radicado desde os anos 1960 nos Estados Unidos, é um dos principais protagonistas da moderna pesquisa da consciência.

Ao longo de cinco décadas de intensa atividade, ele recolheu e sistematizou informações fornecidas por milhares de pessoas que, sob sua supervisão direta, tiveram acesso a estados não usuais de consciência. E, a partir desse levantamento, elaborou um sofisticado mapeamento da psique humana. Sua “cartografia” do espaço interior contempla “territórios” já explorados por Freud, Jung e outros grandes da psicologia. Mas descreve também “regiões” antes totalmente desconhecidas pela ciência ocidental, confirmando ensinamentos das antigas tradições espirituais.

O método terapêutico que Grof elaborou a partir desse estudo tem ajudado indivíduos dos cinco continentes a superar seus traumas psíquicos e a encontrar novos patamares de saúde psíquica, felicidade e auto-realização.

Visões do inconsciente

Para entendermos o alcance das contribuições de Grof, precisamos voltar, ainda que de maneira superficial, ao pensamento de Sigmund Freud (1856-1939), o fundador da psicanálise. Freud afirmou que a psique começa a se estruturar a partir da mais tenra infância. E que, nela, um papel decisivo é desempenhado pelo inconsciente. Este conceito sofreu várias modificações ao longo de sua obra, mas, resumidamente, Freud entendeu o inconsciente como uma espécie de porão da mente. Nele ficariam guardadas todas as tendências do indivíduo potencialmente ameaçadoras à vida civilizada. Por exemplo, a atração sexual que a criança sentiria pelo genitor do sexo oposto.

Para manter essas tendências no domínio do inconsciente, impedindo-as de se realizar, a psique desenvolveria mecanismos de controle, que Freud chamou de superego. O superego é o grande repressor dos impulsos socialmente condenáveis. Porém a repressão nunca é completa, de modo que os conteúdos do inconsciente estão sempre forçando sua passagem ao plano consciente, emergindo nos sonhos e em outras situações em que o policiamento do superego se encontra relaxado.

Este resumo, grosseiramente simplificado, deixa claro que, para Freud, o inconsciente é sempre pessoal e alimentado por conteúdos originados nas experiências biográficas do indivíduo. O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961) foi além, demonstrando que, em camadas psíquicas ainda mais arcaicas do que aquelas que abrigam o inconsciente pessoal de Freud, existe também um inconsciente coletivo, compartilhado por toda a humanidade. Ao sustentar que, no mais profundo de si mesma, “a psique é o universo”, Jung ampliou espetacularmente o foco da psicologia, saltando do acanhado porão de Freud para um campo imenso, misterioso e imprevisível.

Um presente do destino

Stanislav Grof viria validar, detalhar e ampliar as idéias de Jung. Tudo começou em 1956, quando trabalhava no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Praga. Nessa época, estudava Freud e a teoria psicanalítica escondido, pois, no leste europeu, recém-saído do período stalinista, a psicanálise era considerada uma decadente expressão do idealismo burguês. Foi então que o destino colocou em suas mãos um poderoso instrumento para a investigação da psique. Tratava-se de um pacote, enviado pelo Laboratório Sandoz, da Suíça, contendo uma droga que o químico Albert Hofmann havia sintetizado acidentalmente em 1938. Os pesquisadores da Sandoz acreditavam que essa substância induzia sintomas semelhantes aos da psicose. E poderia, por isso, fornecer uma chave para a compreensão e o tratamento da doença. O laboratório enviou amostras a vários psiquiatras, solicitando suas avaliações. Tratava-se da dietilamida do ácido lisérgico ou LSD.

Ao testar a droga em si mesmo, Grof vivenciou uma experiência que pôs em xeque todas as suas idéias acerca da estrutura da mente e da realidade. “Não pude acreditar no quanto aprendi sobre a natureza da psique nas poucas horas que durou aquela experiência”, escreveria anos mais tarde. “Senti-me atingido por uma radiância comparável ao epicentro de uma explosão nuclear. Esse extraordinário turbilhão arremessou minha consciência fora do corpo. Primeiro, perdi a noção de meu ambiente imediato, depois da clínica psiquiátrica, em seguida de Praga e, finalmente, do planeta. Numa velocidade inconcebível, minha consciência expandiu-se até dimensões cósmicas. Experimentei o que parecia ser o Big Bang, passei através de buracos negros e buracos brancos do universo, identifiquei-me com supernovas em explosão e vivenciei muitos outros estranhos fenômenos cósmicos”.

Essa experiência extraordinária deixou o pesquisador profundamente perturbado. Educado no ambiente universitário materialista e ateu da antiga Tchecoslováquia comunista, ele concebia a consciência como um mero reflexo da realidade empírica, resultante da atividade do sistema nervoso central. Nada poderia existir em sua mente que não fosse um produto da percepção sensorial ou do aprendizado. Como explicar, então, os inesperados conteúdos e conhecimentos com os quais se deparou em sua viagem imóvel? Às voltas com um impasse filosófico sem precedentes em sua vida, Grof chegou a pensar em abandonar a psiquiatria.

A mente e a matéria

Seguiu-se um longo período de profundos questionamentos. Dotado de uma inteligência brilhante e implacavelmente rigorosa, o cientista estudou o assunto por todos os ângulos e convenceu-se de que, embora nossas funções mentais estejam ligadas ao cérebro, isso não quer dizer que decorram dele. Anos mais tarde, ele compararia a relação mente-cérebro àquela que existe entre um programa de tv e o televisor. A imagem e o som que percebemos ao assistir televisão dependem criticamente dos componentes materiais do aparelho. Mas nenhuma pessoa minimamente informada dirá que o programa seja gerado dentro dele. “A consciência”, afirmou Grof, “não deriva da matéria. É um atributo primordial de toda a existência. Dizer que o mundo é material e que não existe dimensão espiritual não é um fato científico, mas uma suposição metafísica”.

Os ignorantes fariam do LSD um veículo para viagens inconseqüentes ou autodestrutivas. Nas mãos de um pensador do calibre de Grof, a substância transformou-se em uma chave que lhe permitiu abrir as portas da percepção e descortinar cenários até então ignorados pela ciência. Nos anos seguintes, ele coordenou numerosas sessões experimentais no Instituto de Pesquisa Psiquiátrica de Praga. Os participantes voluntários dessas experiências eram pessoas que provinham da nata da intelectualidade tcheca. Em 1967, foi convidado a assumir o posto de professor assistente de psiquiatria na Escola de Medicina da Johns Hopkins University, nos Estados Unidos, e, logo em seguida, tornou-se chefe de pesquisa psiquiátrica do Maryland Psychiatric Research Center. Conta que deixou a antiga Tchecoslováquia apenas com a roupa do corpo e uma valise com todos os resultados do estudo realizado até então.

Poupado da catástrofe nacional provocada pela invasão da Tchecoslováquia por tropas soviéticas em 1968, Grof fixou residência nos Estados Unidos e, na companhia de sua primeira esposa, a famosa antropóloga Joan Halifax, passou a trabalhar com pacientes terminais de câncer que, voluntariamente, concederam em ser acompanhados pelo casal. As vivências que coordenaram permitiram que indivíduos agoniados pelo medo da morte ou corroídos pela culpa decorrente dos erros cometidos ao longo da vida encontrassem sua redenção final e pudessem morrer em paz. Do ponto de vista científico, a conclusão definitiva de Grof foi que a droga não produzia a psicose passageira de que suspeitavam os pesquisadores do laboratório suíço nem induzia formas específicas de alucinação. Funcionava, isto sim, como catalisadora e amplificadora da atividade da psique. Em outras palavras, tudo aquilo que as pessoas vivenciavam durante as sessões eram seus próprios conteúdos psíquicos – muitos dos quais haviam permanecido inconscientes por toda a vida. Se as experiências pareciam às vezes tão bizarras era porque o mundo psíquico configurava-se muitíssimo mais amplo e extraordinário do que a ciência jamais imaginara.

Quatro tipos de experiências

Grof classificou essas experiências em quatro grandes categorias: físicas, biográficas, perinatais e transpessoais.

  • As experiências físicas associavam-se ao corpo e sua infinita paleta de sensações. Muitas pessoas relatavam ter experimentado o corpo de forma completamente diferente da usual, percebendo-se com tamanhos enormes ou diminutos, sentindo calores ou frios intensos sem relação com a temperatura ambiente, fazendo contato com tremores, vibrações, prazeres ou dores insuspeitados em localidades específicas ou na totalidade do corpo etc.
  • As experiências biográficas traziam à cena memórias de episódios ocorridos entre o momento do nascimento e o instante presente. Muitos deles haviam permanecido inconscientes por décadas a fio e corroboravam as hipóteses do modelo freudiano.
  • As experiências perinatais referiam-se a processos ocorridos durante a vida intra-uterina, desde o momento da fecundação até o nascimento propriamente dito. Grof descobriu que, mesmo em termos estritamente pessoais, a psique não começava a se estruturar após o nascimento, como supunha Freud. Ao nascer, o indivíduo não era uma tabula rasa, mas, ao contrário, já carregava uma vasta quantidade de registros e memórias daquilo que havia acontecido no interior do útero materno e nas diferentes etapas do parto. As experiências perinatais, afirmou, modelavam a psique de maneira tão ou ainda mais intensa do que as vivências e traumas ocorridos durante a primeira infância.
  • As experiências transpessoais transcendiam os limites corporais, a noção de ego e as categorias de espaço e tempo. Incluíam em várias ocasiões os conteúdos do inconsciente coletivo de Jung, mas podiam ir também muito além deles. Em alguns casos, a consciência parecia transcender as barreiras do tempo, permitindo à pessoa explorar, no presente, situações de seu remoto passado biológico, cultural ou espiritual. Em outros casos, a consciência parecia transcender as barreiras do espaço, com o indivíduo tendo acesso direto à consciência de outras pessoas, grupo de pessoas ou da humanidade como um todo; sintonizando o que aparentava ser a consciência de animais, vegetais, minerais e até mesmo do planeta ou do universo inteiro. Relatos ainda mais intrigantes referiam-se ao contato com grandes mestres espirituais, deuses, anjos, demônios e, no limite, com uma Presença que tudo incluía e a tudo transcendia, e só poderia ser nomeada como Realidade Absoluta ou Deus.

São tão extraordinários os relatos listados por Grof que nos vemos tentados a rotulá-los como meras fantasias ou alucinações dos indivíduos envolvidos no processo. A dificuldade é que eles incluem informações incrivelmente detalhadas – e corretas – que excedem em muito o repertório intelectual dos participantes. Por exemplo, pessoas que relataram episódios de identificação consciente com plantas tiveram vislumbres surpreendente precisos de processos botânicos, como a germinação das sementes, fotossíntese, polinização, permuta de minerais e água nas raízes, embora desconhecessem tudo sobre o assunto antes de passar pela experiência.

Respiração holotrópica

No final dos anos 1960, o uso do LSD foi proibido, inclusive para fins científicos. Diante do imenso arquivo de dados que tinha em mãos, resultante de mais de 4 mil sessões psicodélicas, Grof passou a buscar alternativas para prosseguir seus estudos. Com a importante colaboração de sua segunda esposa, Christina, elaborou um método que, sem utilizar nenhum tipo de droga, possibilita ao participante acessar estados não usuais de consciência e percorrer praticamente os mesmos caminhos trilhados durante as experiências com o LSD. Trata-se da respiração holotrópica, na qual se combinam certos procedimentos respiratórios, música evocativa, trabalho corporal focalizado e desenho de mandalas.

Técnicas respiratórias com o objetivo de ampliar a consciência foram empregadas, ao longo de milênios, por praticamente todas as grandes tradições espirituais e místicas. Grof foi o primeiro cientista a utilizá-las metodicamente como via de acesso à vastidão do mundo psíquico. Dezenas de milhares de voluntários passaram pela respiração holotrópica sob sua coordenação direta. Comparativamente ao LSD, a respiração holotrópica tem a vantagem de exigir dos indivíduos uma participação muito mais ativa e responsável, mobilizando, além da mente, também as estruturas corporais.

O objetivo não é apenas o autoconhecimento, mas também a autotransformação. Ao acessar, por meio da respiração holotrópica, seus conteúdos físicos, biográficos, perinatais ou transpessoais, o participante não apenas entra em contato com seus traumas, mas também com os recursos internos para superá-los. Muitas vezes, uma única sessão de respiração holotrópica permite desatar nós que permaneceram ocultos em anos de psicoterapia convencional, abrindo caminho para o processo de cura.

 

Responsabilidade global

Consciente de que suas descobertas exigiam uma completa revisão do paradigma científico dominante, e que essa revisão cobrava de seus protagonistas uma grande responsabilidade frente aos problemas globais, Grof fundou a International Transpersonal Association (ITA), engajada no diálogo entre as ciências, as artes e a espiritualidade e na busca de respostas para os desafios planetários. As grandes conferências da ITA, realizadas na Islândia, Finlândia, Brasil, Austrália, Índia, Suíça, Japão, República Tcheca, Irlanda e várias vezes nos Estados Unidos, reuniram cientistas da estatura do físico David Bohm, do neurologista Karl Pribram e do psiquiatra Ronald David Laing e líderes espirituais do porte do Dalai Lama, de Dom Helder Câmara e de Madre Teresa de Calcutá, apenas para mencionar os mais conhecidos.

Com 87 anos agora, Grof continua conduzindo seminários sobre sua pesquisa da consciência e workshops de respiração holotrópica. Há muita informação atualizada em seu website: http://www.stanislavgrof.com/

Publiquei também sobre ele o artigo “Onde a ciência encontra a espiritualidade”: https://josetadeuarantes.wordpress.com/2013/01/11/onde-a-ciencia-encontra-a-espiritualidade/ . E uma antiga foto dele comigo:

Grof e eu, Manaus, 1996

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7 Comentários

  1. Lindo texto que, de forma clara e objetiva, traça as principais conexões desde Freud até Grof, esclarecendo um pouco da história e estrutura da psique que tanto tenho me interessado.

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  2. José Maia

     /  19 de julho de 2013

    Grof é um autor que precisamos estudar profundamente. Pelo que vejo suas contribuições são notáveis para o autoconhecimento, a superação de traumas antigos desde e de outras vidas. Esse estudo naturalmente abrange outros autores indispensáveis da Psicologia Transpessoal, como de outras ciências terapêuticas, de correntes filosóficas e religiosas. Notável tudo o que ele nos proporciona de conhecimentos!

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  3. emanuele

     /  7 de maio de 2019

    Olá, gostaria de saber por onde devo começar a estudar essa abordagem? Quais obras são indicadas para iniciantes?

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    • Olá Emanuele. Recomendo que você comece lendo o livro “Além do Cérebro: nascimento, morte e transcendência em psicoterapia”. Considero o livro mais completo do Grof. Como a edição está esgotada, você só consegue encontrar volumes usados, por preços desproporcionalmente altos. Chequei na Estante Virtual, e o preço mínimo que encontrei foi R$ 150. Mas existe também a opção de baixar o PDF gratuitamente em scribd.com.

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  1. Onde a ciência encontra a espiritualidade « José Tadeu Arantes (Kabir)
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  3. Respiração Holotrópica, agosto de 2017 | José Tadeu Arantes (Ganapati)

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