Muhammad, o Profeta do Islã

Miraj

Mi’rāj: a ascensão do Profeta Muhammad aos Céus. Miniatura persa atribuída a Sultan Muhammad. Aquarela e tinta sobre papel. Data de composição: entre os anos 1539 e 1543. Localização atual: British Library, Londres, Reino Unido.

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Vivemos em uma época de fanatismos violentos. Mas também de inédita abertura ao diálogo. Como em nenhum outro tempo, protagonistas de diferentes tradições podem hoje debater civilizadamente e, sem abrir mão das perspectivas que lhes são próprias, buscar um denominador comum para a construção de sociedades multiculturais, pacíficas, democráticas e justas. A raiz do ódio é o medo. E a raiz do medo é a ignorância. Se cada um acender uma lâmpada, a escuridão será menos escura. Este meu pequeno perfil de Muhammad (sobre ele a Paz e as Bênçãos) se insere em tal perspectiva. É a modestíssima homenagem de um não muçulmano ao Profeta do Islã. Para quem quiser se aprofundar no assunto, recomendo o excelente livro de Martin Lings: Muhammad — a vida do Profeta do Islam segundo as fontes mais antigas (Attar Editorial).

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  1. A Arábia pré-islâmica

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A Arábia pré-islâmica era uma terra de cenários grandiosos e ânimos exaltados. Desertos imensos e estreitos desfiladeiros compunham sua paisagem física. Batalhas ferozes e juramentos feitos com os dedos manchados de sangue compunham sua paisagem humana. Nômades ou recém-sedentarizados, os árabes do sexo masculino valorizavam, acima de tudo, a liberdade, a honra, a eloquência e a astúcia. Quanto à mulher, ela era literalmente um objeto, que, ainda menina, o pai entregava em casamento a quem bem lhe aprouvesse e que, mesmo adulta, dependia em tudo da aprovação masculina.

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Os laços de consanguinidade dominavam as relações sociais. Mas havia neles uma gradação. Um antigo provérbio árabe dá bem a medida disso, ao afirmar: “Eu e meu irmão contra meu primo; eu, meu irmão e meu primo contra o forasteiro”. Constantes combates entre tribos e clãs e vinganças de sangue pela honra ultrajada eram a consequência inevitável de tal mentalidade. O Islã haveria de suavizar esses temperamentos e contribuiria decisivamente para a melhoria da condição da mulher, dos pobres e dos órfãos.

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Embora se dizendo descendentes do profeta bíblico Abraão, por meio de seu filho Ismael, os árabes eram então predominantemente politeístas. Minorias judaicas e cristãs conviviam com uma população que cultuava os espíritos da natureza (djin) e centenas de deuses e deusas. Seu centro espiritual era o Santuário da Caaba, na cidade de Meca. Nesse edifício de formato aproximadamente cúbico, cujos ângulos se alinham com os pontos cardeais, ficava guardada a Pedra Negra, o principal objeto de adoração. Diz a tradição islâmica que ela desceu do Céu, branca como a neve, mas que os pecados dos filhos de Adão progressivamente a escureceram. Mais tarde, os místicos muçulmanos afirmariam que, seguindo a orientação divina, Abraão e Ismael edificaram a Caaba no ponto exato em que o Eixo do Mundo toca o plano terrestre. Nos vários planos celestiais, cortados por essa linha invisível, haveria santuários análogos, frequentados por anjos. E, acima de todos eles, o Trono de Deus.

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Em torno da Caaba, os mequenses haviam disposto 360 ídolos, um para cada grau da circunferência, um para cada dia do ano lunar. Peregrinos procedentes de toda a Arábia vinham a Meca uma vez por ano e circundavam sete vezes a Caaba, reverenciando os ídolos uns após os outros. Essa circum-ambulação humana, o tawaf, reproduzia, no plano terrestre, a ronda dos astros ao redor da estrela polar, provocada pelo movimento de rotação da Terra.

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Allah era uma das divindades cultuadas no Santuário. Seu nome, al-Illah, é a forma árabe de El, o Deus de Abraão, mencionado no Antigo Testamento da Bíblia. Mas os árabes daquela época atribuíam igual importância a Hubal, um deus de origem moabita, e às deusas al-Lat, al-Uzzah e Manat, conhecidas como as “três Filhas de Deus”. Sede do grande templo de al-Lat, a cidade de Taif disputava com Meca a proeminência religiosa na Arábia. E o panteão árabe não se restringia aos 360 deuses do Santuário. Cada casa tinha seu deus particular. O número destes não parava de crescer, graças aos contatos comerciais e às relações matrimoniais com outros povos.

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Os indianos cultuam até hoje milhões de deuses e deusas. Porém, graças aos ensinamentos de grandes sábios, como Adi Shankaracharya (século 9 d.C.), adquiriram a compreensão de que esses múltiplos deuses e deusas são apenas diferentes manifestações ou projeções de uma Divindade Única. É esse profundo senso de unidade que confere vitalidade espiritual às religiões da Índia, permitindo que elas atuem como poderosos fatores de integração nos planos individual, social e cósmico. Alguns pensadores muçulmanos contemporâneos acreditam que tal senso de unidade, inerente a todas as tradições espirituais autênticas, fora esquecido na Arábia pré-islâmica. Sem um princípio único e integrador, o politeísmo árabe teria se transformado em uma religião supersticiosa e estéril. Dizem esses especialistas que, assim como Abraão, Moisés e Jesus, também Muhammad recebeu um “mandato celeste” para restaurar o conhecimento da Unidade Divina, tornando-o ativo, integrador, transformador.

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  1. A origem

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De acordo com a tradição árabe, que agrega ao nome do indivíduo os nomes do pai, do avô, do bisavô e da tribo, o Profeta do Islã chamava-se Abulqassim Muhammad ibn Abdallah ibn Abdul Muttalib ibn Hashim al Quraysh Seu nome próprio, Muhammad, significa “o Extremamente Louvado”. Uma corruptela dessa palavra resultou na forma aportuguesada Maomé. Nascido em Meca, a mais politeísta das antigas cidades árabes, ele resgatou e aprofundou a tradição monoteísta do judaísmo e do cristianismo. Analfabeto, transmitiu o Corão, um livro que é considerado a palavra de Deus. Criado em uma sociedade tribal, sem unidade política, lançou as bases de uma civilização que se estendeu da Península Ibérica às fronteiras da China e mudou os rumos da história humana.

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Os historiadores muçulmanos divergem quanto à data exata de seu nascimento. Ele teria ocorrido no ano 569, 570 ou 571 d.C. Quanto ao dia, recorrendo até mesmo a argumentos astrológicos, uns propõem 22 e outros, 25 de abril. Muhammad era descendente em linha direta de Qusayy, grande chefe da tribo dos Quraysh e responsável pela sedentarização da população de Meca. Seu avô, Abdul Muttalib, foi outro líder notável, guardião do Santuário e encarregado de recepcionar os peregrinos que acorriam à cidade. O nascimento do menino ocorreu dois meses depois da morte de seu pai, Abdallah. A mãe, Âmina, amamentou-o nos primeiros meses de vida. Depois, como era hábito na tribo dos Quraysh, ele foi entregue aos cuidados de uma ama, para ser criado em uma aldeia do deserto, longe do burburinho da cidade. Halima era o nome dessa ama e Muhammad permaneceu em sua companhia até os cinco anos de idade. Mais tarde, atribuiu seu excepcional domínio da língua árabe a essa estadia no deserto, onde os beduínos cultivavam a pureza do idioma. Voltou para casa poucos meses antes de sua mãe morrer.

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Órfão de pai e mãe e depois de perder também o avô, Muhammad foi criado por um tio paterno, Abu Talib, homem pobre, porém afetuoso. Para ajudar nas despesas, começou a trabalhar muito cedo, dedicando-se ao pastoreio de animais. Imprópria para a agricultura, devido à aridez do solo, e sem um artesanato expressivo, Meca destacava-se como centro comercial. Duas caravanas partiam anualmente da cidade: uma para a Síria, no verão, e outra para o Iêmen, no inverno. Abu Talib participava desse negócio e, com 12 anos, Muhammad o acompanhou em uma viagem à Síria. Ocorreu, então, um fato marcante em sua biografia. Na cidade síria de Busra (não confundir com Basra, no Iraque), o menino encontrou-se com o monge cristão Bahira, que reconheceu nele o dom da profecia. Orientalistas cristãos atribuem a Bahira e ao ambiente cultural sírio a influência que levou Muhammad ao monoteísmo. Essa hipótese é contestada, porém, pelos historiadores muçulmanos.

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Já durante a juventude, Muhammad destacou-se pelo espírito contemplativo. Seguindo a tradição familiar, adotou a profissão de comerciante. Os biógrafos ressaltam sua honestidade nos negócios e a fidelidade que demonstrava à palavra empenhada. Em um contexto tribal orgulhoso, no qual os ânimos ferviam pelo menor motivo e uma pequena briga logo se transformava em guerra, ele se distinguia pelo equilíbrio e a moderação. Um fato altamente significativo foi seu casamento com Khadija. Duas vezes viúva e mãe de vários filhos, Khadija bint Khuwailid bint Assad bint Abdul Uzza bint Qusayy era uma mercadora muito rica e respeitada. Tinha cerca de 40 anos quando desposou Muhammad. E ele, apenas25. A despeito do patriarcalismo da sociedade árabe, essa nobre mulher exerceu enorme influência em sua vida. Foi confidente, conselheira e, anos mais tarde, sua primeira discípula. Entregou-lhe o comando de todos os seus negócios, proporcionando-lhe o conforto material que lhe permitiu dedicar-se mais intensamente às questões espirituais.

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Muhammad e Khadija permaneceram juntos durante 25 anos e, enquanto ela viveu, ele não desposou outra mulher. Depois de sua morte, teve 15 esposas e numerosas concubinas. A bela e inteligente Aisha – que ao se casar com o Profeta era ainda uma menina – foi a mais influente e desempenhou um papel decisivo no estabelecimento dos costumes muçulmanos. Da união de Muhammad e Khadija, nasceram-lhe seis filhos: dois meninos, que morreram na infância, e quatro meninas, três das quais faleceram no tempo em que ele ainda vivia. Fátima, a única sobrevivente, foi a filha por meio da qual se estabeleceu sua descendência, já que outro filho, que teve em idade avançada, fruto de sua relação com Maria, a Copta, também morreu antes de completar dois anos.

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Segundo a descrição feita por Ali, primo, genro e um dos sucessores do Profeta, Muhammad era, em sua maturidade, um homem de estatura mediana, bonito de rosto, com cabelos muito pretos que lhe chegavam aos ombros, barba espessa, sobrancelhas grossas e pestanas longas. Grandes olhos negros contrastavam com a pele clara e ressaltavam ainda mais sua aparência contemplativa.

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  1. A Revelação

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O acontecimento decisivo, que transformou radicalmente a vida de Muhammad, mudou a face da Arábia e influenciou o próprio destino da humanidade, ocorreu no ano 610. Era uma noite do mês de Ramadan, dedicado ao jejum e aos retiros espirituais. Como de hábito, ele meditava sozinho, em uma caverna isolada do Monte Hira, nas cercanias de Meca. Afirma a tradição que, ao alcançar um estado de profunda absorção espiritual, percebeu a presença do Arcanjo Gabriel, na forma de um homem. O anjo lhe disse: “Recita!”. Surpreso, Muhammad respondeu: “Não sou um recitador”. O mensageiro celestial então o abraçou, apertou até ele quase desfalecer e repetiu a ordem: “Recita!”. Muhammad voltou a argumentar que não era um recitador e outra vez foi abraçado e espremido até o limite da sobrevivência. Quando recuperou o fôlego, Gabriel lhe disse: “Recita em nome de teu Senhor, que tudo criou! Criou o homem de um coágulo. Recita! Teu Senhor é o mais Generoso. Ele, que ensinou com o cálamo, ensinou ao homem o que este não sabia”.

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Segundo os místicos muçulmanos, o cálamo (caneta), mencionado na Revelação, corresponde ao Alif, a letra inicial do alfabeto árabe. Representado como um traço vertical, Alif é o símbolo da Unidade Divina, a primeira manifestação de Deus, a pena com a qual o Livro do Mundo foi escrito. Muhammad não compreendeu de imediato o significado de sua experiência. Ele já havia tido muitos sonhos misteriosos, sonhos que antecipavam acontecimentos futuros ou lhe apresentavam aspectos não usuais da realidade. Com passar dos anos, acostumara-se também aos jejuns e às meditações, nas quais buscava um sentido para a existência. Mas aquelas palavras enigmáticas estavam fora de suas expectativas. Profundamente perturbado, voltou para casa trêmulo e febril. Foi Khadija que o tranquilizou. Quarenta dias se passaram. Muhammad, que a princípio temera, agora ansiava por novas revelações. Depois de provar o manjar espiritual, considerava a vida cotidiana desprovida de sabor. A saudade que sentia daquele alimento místico era tanta que chegou a pensar em suicídio. Foi então que recebeu uma nova mensagem. E, dizem os muçulmanos, continuou a recebê-las, em pequenos bocados, até o final da vida.

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Essas mensagens são interpretadas como a palavra de Deus (Allah), sempre comunicada a Muhammad pelo Arcanjo Gabriel. Elas compõem o texto do Corão. Seu conteúdo principal é o Islam, a total submissão do homem à vontade de Deus. Segundo a ótica muçulmana, o exemplo mais perfeito dessa submissão foi dado por Abraão, que, atendendo ao comando de Deus, que testava sua fidelidade, aceitou sacrificar o próprio filho, Isaac – ato impedido por um anjo, que revogou a ordem anterior. O islamismo reconhece todos os patriarcas e profetas israelitas e exalta enormemente a figura de Jesus, considerado o protótipo da santidade. Mas contesta a concepção judaica de um “povo eleito” e nega com veemência a divindade de Cristo.

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Quando Muhammad começou a transmitir aos outros as experiências que estava tendo, um círculo de discípulos juntou-se pouco a pouco à sua volta. Primeiro, Khadija. Em seguida, Ali, futuro marido de Fátima. Depois, Abu Bakr, futuro pai de Aisha. O grupo foi crescendo, principalmente entre os marginalizados da riqueza e do poder, e passou a incomodar os setores dominantes da tribo dos Quraysh, que controlavam o comércio e a política na cidade de Meca e auferiam grandes lucros com o movimento de peregrinos em direção à Caaba.

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  1. A “Ascensão ao Paraíso”

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Khadija morreu em 619. Um ano mais tarde, Muhammad teve sua mais impressionante experiência mística: a célebre “Ascensão ao Paraíso” (miraj). Diz a tradição que, em uma noite pontuada por relâmpagos e trovões, o Profeta estava deitado, mas não dormindo, na cidade de Meca. Em suas visões anteriores, o Arcanjo Gabriel sempre lhe aparecera na forma de um homem. Desta vez, porém, contemplou-o em sua esplêndida forma cósmica. Tomando Muhammad pela mão, Gabriel o fez montar um animal fabuloso, o Buraq, menor do que a mula e maior do que o asno, de cor branca e dotado de asas. Alçando voo, e sobrevoando a Caaba, o Buraq conduziu o Profeta e o Arcanjo de Meca a Jerusalém – até o cume do monte Moriá, onde, quase sete décadas depois, os conquistadores islâmicos edificariam o célebre Domo do Rochedo. Daquele local privilegiado, considerado sagrado por judeus, cristãos e muçulmanos, os viajantes ascenderam ao Céu.

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Sempre guiado por Gabriel, Muhammad teria atravessado as muitas esferas que compõem o Paraíso, instruindo-se com anjos e profetas, até se encontrar sozinho, trêmulo e quase aniquilado, na presença de Deus. Ao iniciar-se a jornada, uma jarra d’água que se encontrava à sua cabeceira fora derrubada. Muhammad retornou a tempo de impedir que a água derramasse. A visão, ou o que quer que tenha sido essa experiência, obviamente ocorreu fora dos parâmetros usuais de espaço e tempo.

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  1. A Fuga

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No ano 622, pouco mais de uma década depois de Muhammad ter iniciado sua missão profética, a cidade de Meca encontrava-se profundamente dividida. Herdeiro das tradições monoteístas do judaísmo e do cristianismo, o islamismo cindira a população local. Jesus afirmou que sua mensagem provocaria a divisão entre os homens, colocando o filho contra o pai, a filha contra a mãe, a nora contra a sogra. O mesmo se dava com a pregação de Muhammad, que seus adeptos consideram ser o sucessor espiritual de Abraão, Moisés e Jesus. Enquanto as revelações comunicadas pelo profeta atraíam um número crescente de adeptos, em sua maioria jovens, os homens poderosos da comunidade permaneciam impenetráveis e hostis.

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A hostilidade manifestava-se no próprio interior da tribo (Quraysh), do clã (Bani Hashim) e até mesmo da parentalha mais próxima de Muhammad. Por isso, quando os líderes dos Quraysh se reuniram em assembleia para decidir o que fazer, seu rico tio Abu Lahab ausentou-se propositalmente, deixando os inimigos do Profeta com as mãos livres para agir. Coube ao mais apaixonado adversário do Islã a proposta vencedora. Conforme o costume árabe de apelidar o pai com base no nome do filho primogênito, tal homem era conhecido como Abul Hakam (Pai de Hakam), mas os muçulmanos o chamariam de Abu Yahl (Pai da Ignorância). Este propôs que cada clã da tribo designasse um jovem forte e bem relacionado. No momento oportuno, esses homens se lançariam juntos sobre Muhammad, dando-lhe, cada um, uma punhalada mortal. Deste modo, não tendo um único agressor em quem se vingar, o clã da vítima seria obrigado a aceitar, em lugar da reparação de sangue, uma reparação em dinheiro, de acordo com os costumes tribais.

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Diz a tradição que o Arcanjo Gabriel apareceu então a Muhammad e o alertou sobre a conspiração, instruindo-o a abandonar Meca. Fazia tempo que os muçulmanos ameaçados fugiam da cidade, encaminhando-se, primeiro, à Abissínia, onde gozavam da proteção do imperador cristão, e, depois, ao oásis de Yathrib, cujos chefes haviam aderido ao Islã e jurado fidelidade ao Profeta. Meca vinha sofrendo notável redução populacional e perda de status econômico devido a esse fluxo migratório. Chegara a hora do próprio Muhammad refugiar-se no oásis.

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O Profeta dirigiu-se à casa de Abu Bakr, amigo fiel, discípulo de primeira hora e futuro sucessor. Este chorou de alegria ao saber que poderia acompanhá-lo no exílio. Concebido o plano de fuga, Muhammad voltou ao lar e relatou o que estava para ocorrer a seu primo Ali. Os conspiradores haviam combinado encontrar-se na porta da casa de sua projetada vítima quando caísse a noite. Ao chegarem, porém, ouviram as vozes das esposas do Profeta e conjeturaram que, caso violassem a privacidade das mulheres, ficariam cobertos de desonra aos olhos de todos os árabes. Por isso, decidiram esperar até o amanhecer, para atacar Muhammad quando ele saísse para a prece, como costumava fazer toda a madrugada.

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O Profeta notou a presença dos agressores e orientou Ali a dormir em sua cama, cobrindo-se com seu manto verde, garantindo-lhe que, sob aquela vestimenta, nenhum mal lhe sucederia. Quanto a si próprio, recitou o versículo do Corão que afirma: “E lhes colocaremos uma barreira pela frente e uma barreira por trás, e lhes ofuscaremos os olhos, para que não possam ver”. Saiu então de casa e – sustenta a tradição – passou sob as barbas de seus inimigos sem que estes o percebessem. Os conspiradores ficaram o resto da noite vigiando. Espiando pela janela, viram que Muhammad dormia em sua cama, coberto com seu manto. Somente quando Ali se levantou, na manhã seguinte, é que perceberam que haviam sido ludibriados.

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Nesse ínterim, o Profeta voltou à casa de Abu Bakr e, sem perda de tempo, fugiram ambos pela janela dos fundos, onde dois camelos já encilhados os esperavam. Abu Bakr levava na garupa seu filho Abdallah. Quando os camelos aceleraram seu passo, a lua minguante do mês de Safar, que naquele ano correspondia ao nosso mês de julho, já havia ascendido sobre as colinas orientais de Meca e começava a empalidecer à luz da aurora.

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Os fugitivos rumaram para o Sul, em direção ao Iêmen, porque sabiam que seus eventuais perseguidores certamente os procurariam no Norte, nos muitos caminhos que levavam a Yathrib. Amir, um escravo liberto por Abu Bakr, os seguiu com o rebanho de seu patrão, para que as marcas das ovelhas escondessem as pegadas dos camelos. Ao chegarem a uma caverna previamente escolhida, desmontaram e mandaram que Abdallah levasse os animais de volta à cidade. O filho de Abu Bakr voltou na noite do segundo dia em companhia de sua irmã Asma, trazendo provisões e a notícia de que os chefes do Quraysh haviam oferecido cem camelos de recompensa para quem encontrasse e capturasse Muhammad. Beduínos interessados no prêmio já vasculhavam todas as rotas normais entre Meca e Yathrib.

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No terceiro dia, alguns desses caçadores de recompensa aproximaram-se perigosamente da caverna. Mas – afirma a tradição – a Providência Divina impediu que eles encontrassem o procuravam. Na noite desse dia, Abdallah voltou com Asma e um guia beduíno, que levaria o Profeta e Abu Bakr a Yathrib por um caminho longo e totalmente não usual. Embora Yathrib fique ao norte de Meca, o guia dirigiu-se para Sudoeste e só inflexionou para o Norte quando chegou às costas do Mar Vermelho. Após 12 dias de viagem, os fugitivos chegaram finalmente ao oásis.

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O dia 16 de julho de 622, data em que Muhammad deixou a caverna nas imediações de Meca para buscar refúgio em Yathrib, marca o início do calendário muçulmano. É a Hégira, forma aportuguesada da palavra árabe hijra (fuga).

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  1. A Cidade

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Tendo encontrado no caminho a caravana de um primo de Abu Bakr, que regressava da Síria, Muhammad e seu companheiro receberam de presente roupas brancas, de tecido fino. Assim vestidos, suas figuras se destacavam contra o solo negro, de lava vulcânica, compondo uma imagem impressionante. Foi um judeu das cercanias de Yathrib o primeiro a avistá-los. Logo, toda a multidão de muçulmanos que habitava o local correu ao seu encontro. Em seu discurso inaugural, o Profeta presenteou os admiradores com palavras eloquentes: “Ó gente! Dirigi, uns aos outros, saudações de paz; dai de comer aos famintos; honrai os vínculos de parentesco; orai durante as horas em que os homens dormem. Assim, entrareis em paz no Paraíso”.

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Retido pela população dos arrabaldes, que não se cansava de homenageá-lo, Muhammad permaneceu três dias nas imediações de Yathrib, enquanto esta se impacientava para vê-lo. Depois, acompanhado por Abu Bakr e uma centena de partidários, e montando sua camela Qaswa, cavalgou em direção à cidade. À direita e à esquerda, com armaduras e espadas em punho, ginetes das tribos de Aws e Jazrach formavam a guarda de honra. Homens, mulheres e crianças, postados ao longo do caminho, saudavam a imponente comitiva com o grito de “Chegou o Profeta de Deus!”. O triunfo da entrada em Yathrib, que passaria a se chamar Madinat-al-Nabi (Cidade do Profeta) ou simplesmente Medina (Cidade), dão uma ideia da importância política do acontecimento.

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Ao deixar Meca, Muhammad já havia tido suas mais decisivas experiências místicas e transmitido os fundamentos do Islã. Mas, oprimidos pela aristocracia mequense, os muçulmanos ainda estavam na defensiva. Em Medina, a situação se inverteu. A cidade colocou-se sob a direção do Profeta, que deixou de ser apenas um instrutor espiritual para se tornar também um chefe político e militar. A constituição que ditou, estabelecendo a convivência harmoniosa entre as tribos locais, os imigrantes islâmicos e a numerosa comunidade judaica, autorizada a praticar sua religião, é considerada uma obra de extraordinária perspicácia política. De Medina, Muhammad partiu para a conquista de Meca e a unificação de toda a Arábia.

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  1. A vitória

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Seguiram-se oito anos de guerra entre os partidários do Profeta e os habitantes de Meca – uma luta prolongada, com vitórias e derrotas, armistícios e rompimentos, perdões contemporizadores e represálias sangrentas. Em todo o processo, destacou-se a visão estratégica de Muhammad, que, mesmo quando fez concessões imediatas ao adversário, acabou tirando proveito delas para fortalecer sua posição no longo prazo. No ano 630, finalmente, ele avançou sobre a cidade com um exército de 10 mil homens. Esgotada, Meca rendeu-se sem combater.

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Entrando na cidade santa, Muhammad circundou a Caaba montado em sua camela. E, com o bastão utilizado para conduzir o animal, destruiu pessoalmente cada um dos 360 ídolos, enquanto recitava o versículo do Corão que diz “A Verdade chegou. A falsidade desvaneceu-se”. Manteve, no entanto, a Pedra Negra, como uma dádiva de Deus. E a Caaba, como o mais sagrado dos santuários, o ponto focal (qibla) em direção ao qual todo o muçulmano deve se voltar no momento da prece.

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Em vez de castigar os adversários, como esperavam alguns de seus seguidores, o profeta agiu com magnanimidade, perdoando até mesmo os mais ardorosos chefes inimigos e incorporando aos ritos muçulmanos a peregrinação à Caaba. Esse procedimento levou seu prestígio às alturas. O último foco de resistência, um exército de 30 mil beduínos pagãos, foi derrotado semanas mais tarde. A partir daí, representantes de todas as tribos árabes vieram jurar-lhe fidelidade. Quando Muhammad morreu, nos braços de Aisha, em 632, a Arábia estava unificava. Um século depois, o território muçulmano estendia-se da Península Ibérica às fronteiras da China.

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Ao contrário de Jesus, que mandou os discípulos oferecerem a outra face a quem lhes dava um tapa, Muhammad propagou sua fé com conquistas militares e tratados diplomáticos. Uma generalização equivocada dessa contingência história levou alguns de seus seguidores a uma perspectiva religiosa exclusivista e belicosa. Tal enfoque não corresponde, porém, à real natureza do Islã. Adeptos da experiência espiritual genuína, os sufis, os grandes místicos muçulmanos, reconheceram a unidade profunda de todas as religiões autênticas. O andaluz Ibn Árabi (1165-1240), considerado o maior deles, proclamou essa unidade em versos de imperecível beleza:

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“Meu coração tornou-se capaz de todas as formas:

É um pasto de gazelas, o convento do cristão,

Um templo para os ídolos, a Caaba do peregrino,

O rolo da Torá, o texto do Corão.

Sigo a religião do Amor.

Para onde quer que avancem as caravanas do Amor,

Lá é meu credo e minha fé.”

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