Seis estrofes sobre o Eu

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Apresentação

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Este é mais um dos maravilhosos poemas de Adi Shankaracharya, o grande expositor do Advaita, a Não-Dualidade. Considerado o maior filósofo do Índia, ele teria vivido, segundo as melhores datações acadêmicas, no nono século depois de Cristo.

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Os títulos que lhe deu a tradição foram Atmashatkam ou Nirvanashatkam. Atmashatkam quer dizer, precisamente, “Seis Estrofes sobre o Eu”. Nirvanashatkam quer dizer “Seis Estrofes sobre o Nirvana”, referindo-se, neste caso, ao elevado estágio de consciência que nos possibilita transitar da falsa identificação com o “Pequeno Eu” (Ahamkara) para a identificação com o “Eu Verdadeiro” (Atman), que é o próprio Divino. Daí o refrão que se repete no último verso das seis estrofes: Shivo’ham, Shivo’ham: “sou Shiva, sou Shiva”.

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Existe uma narrativa, verdadeira ou lendária, acerca da composição deste poema. O jovem filósofo, que ficaria conhecido como Shankaracharya, estava em Kashi (Varanasi), a mais sagrada das cidades da Índia. Ao se dirigir para o banho diário no Ganges, teve sua trajetória interrompida por um chandala. Os chandalas eram pessoas encarregadas da cremação dos cadáveres. E, por se ocuparem hereditariamente de uma atividade considerada “impura”, haviam sido posicionados entre os “párias”, no estrato mais baixo da sociedade de castas.

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As regras bramânicas proibiam qualquer tipo de contato físico com os párias – por isso, eles eram chamados de “intocáveis”. Com a consciência ainda obstruída por esse preconceito, Shankaracharya pediu gentilmente ao chandala que saísse de seu caminho. Mas, em vez de se afastar, o “pária” lhe perguntou “quem é você?”. O filósofo foi fulminado pela pergunta, que, como um raio, destruiu instantaneamente todo o seu sistema de crenças. Sentando em meditação, alcançou estágios cada vez mais altos de consciência, deixando para trás todas as falsas identificações, até chegar ao cerne de si mesmo e à sua verdadeira identidade, que é a verdadeira identidade de tudo e de todos. “Sou Shiva” foi a resposta que encontrou.

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O Poema

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Mente, intelecto, ego: não sou.

Nem olhos, nem orelhas, nem narinas, nem boca, nem pele,

Nem terra, nem água, nem fogo, nem ar, nem éter.

Forma da consciência e do supremo deleite: sou Shiva, sou Shiva.

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Nem o prana que inalamos, nem seus cinco ventos internos,

Nem os tecidos do corpo, nem os cinco corpos que nos revestem,

Nem língua, nem mãos, nem pés, nem genitais, nem ânus.

Forma da consciência e do supremo deleite: sou Shiva, sou Shiva.

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Não tenho gostos ou desgostos, nem cobiça ou ilusão.

Não tenho orgulho, nem vaidade, nem inveja de ninguém.

Nem dever, nem riqueza, nem luxúria, nem libertação.

Forma da consciência e do supremo deleite: sou Shiva, sou Shiva.

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Nem virtude, nem pecado, nem prazer, nem dor.

Não preciso dos Vedas, nem de mantras, nem de peregrinações.

Não sou a comida, nem o que come, nem o ato de comer.

Forma da consciência e do supremo deleite: sou Shiva, sou Shiva.

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Não tenho medo da morte, nem faço distinções de castas.

Não tenho pai, nem mãe, porque nunca nasci.

Não tenho parentes, nem amigos, nem guru, nem discípulos.

Forma da consciência e do supremo deleite: sou Shiva, sou Shiva.

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Sou um sem outro, porque estou além das diferenças.

Existo em todos os lugares e estou presente em todas as coisas.

Equânime com tudo e com todos, a nada me apego.

Forma da consciência e do supremo deleite: sou Shiva, sou Shiva.

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Nota

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O poema foi escrito em sânscrito, em seis estrofes de quatro versos, metrificados e abundantes em recursos poéticos como assonâncias e rimas. Além da riqueza de conteúdo, o resultado formal é extraordinário, em sonoridade e ritmo. Por isso, no idioma original, o poema foi e continua sendo amplamente recitado ou cantado.

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Recriei o poema em português comparando duas traduções diferentes em inglês. E, com a ajuda do dicionário, cotejei o resultado com o texto original em sânscrito, descartando muitos erros grosseiros de uma das traduções em inglês, justamente a que é mais reproduzida na internet. Além disso, procurei devolver ao conjunto um pouco da beleza poética, perdida nas traduções ao inglês.

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Quanto à minha recriação em português, preciso dizer ainda o seguinte: o sânscrito é uma língua extremamente compacta e certas palavras possuem uma polissemia, uma riqueza de matizes, que é impossível alcançar nos idiomas modernos. Ademais, Shankaracharya adotou uma terminologia depurada por séculos e até milênios de experiência mística e especulação filosófica. Assim, por exemplo, traduzi buddhi por “intelecto” e ananda por “supremo deleite”. Mas estas e outras estão longe de serem soluções ideais.

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Imagem ao alto: Amanhecer em Moreré, foto de Márcia Micheli

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