Sobre a Unidade de Deus — segundo Ali

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Ali ibn Abu Ṭalib (600, 601 ou 607 d.C. – 661 d.C.)

 

Nahj al-Balagha (Cume da Eloquência), Sermão 185 [*]

Aquele que lhe atribui condições não acredita em sua unidade, nem aquele que o compara apreende sua realidade. Aquele que o ilustra não o exprime, nem aquele que o imagina o expressa. Tudo aquilo que é conhecido em si mesmo foi criado, e tudo o que existe por meio de outras coisas é efeito. Ele trabalha, mas não com a ajuda de instrumentos. Ele estabelece medidas, mas não pela atividade do pensamento. Ele é rico, mas não por meio da aquisição.

O tempo não lhe faz companhia, e os implementos nada lhe acrescentam. Seu ser precede o tempo. Sua existência precede a não-existência. Sua eternidade precede o começo. Por sua criação dos sentidos, sabe-se que ele não tem sentidos. Pelo contradição entre os coisas, sabe-se que ele não tem contrário. Pela similaridade entre as coisas, sabe-se que ele não tem similar. Ele fez da luz o contrário das trevas, do brilho o contrário da opacidade, da secura o contrário da humidade, do calor o contrário do frio.

Ele produz afeição entre as coisas inimigas. Ele funde as coisas diversas, aproximas as distantes e separa as que estão unidas. Ele não é confinado por limites nem contado por números. As coisas materiais circundam outras de sua mesma natureza, e as sensações apontam para o que lhes é similar. A palavra mundhu (“desde”) desmente-lhes a eternidade; a palavra gad (“proximidade”, no tempo) nega-lhes a perenidade; a palavra lawla (“o que não é”) distancia-as da perfeição. Por meio delas, o Criador manifesta a si mesmo para a inteligência. Por meio delas, ele oculta a si mesmo da visão dos olhos.

Imobilidade e movimento nele não ocorrem. E como poderia ocorrer nele aquilo que ele mesmo faz ocorrer? E como poderia reverter para ele aquilo que ele mesmo originou? E como poderia aparecer nele aquilo que ele mesmo fez aparecer? Se assim não fosse, seu eu estaria sujeito à diversidade, seu ser tornar-se-ia divisível, sua realidade não poderia ser considerada eterna. Se ele tivesse uma frente, deveria também ter um fundo. E precisaria ser completado se sobre ele se abatesse a escassez. Nesse caso, sinais do criado apareceriam nele, e ele se tornaria um sinal [conducente aos objetos] ao invés dos sinais [dos objetos] conduzirem a ele. Pelo poder de sua abstenção, Ele está muito acima de ser afetado pelas coisas, que afetam umas às outras.

Ele é o que não muda nem se extingue. O processo de fixação não lhe convém. Ele não gerou — de outra forma, poderia ser considerado como tendo nascido. Ele não foi gerado — de outra forma, poderia ser contido dentro de limites. Ele é muito elevado para ter filhos. Ele é muito puro para ter parceiras. O pensamento não pode pensá-lo para lhe atribuir quantidade. A imaginação não pode imaginá-lo para lhe atribuir forma. Os sentidos não podem senti-lo para lhe atribuir sensação. Ele não muda em nenhuma condição. Ele não passa de um estado a outro. Os dias e as noites não o tornam velho. A luz e a escuridão não o afetam. Ele comunica, mas não com a língua ou a voz. Ele escuta, mas não com as orelhas ou o ouvido. Ele diz, mas não pronuncia palavras. Ele recorda, mas não memoriza. Ele determina, mas não pelo exercício da mente. Ele ama e aprova, mas sem sentimentalidade. Ele odeia e se enraivece, mas sem esforço. Quando quer criar algo, ele diz “seja”, e assim é, mas não pela voz que percute os ouvidos pode esse chamado ser escutado. Sua fala é um ato criador. O criado nunca existiu antes disso. Se fosse eterno, seria um segundo deus.

Não pode ser dito que ele veio à existência depois de não existir, porque, nesse caso, os atributos das coisas criadas teriam que ser atribuídos a ele, e não haveria diferença entre as coisas e ele, e ele não teria precedência sobre elas. Assim, o criador e a criatura tornar-se-iam equivalentes e o iniciador e o iniciado estariam no mesmo nível. Ele criou o conjunto da criação sem qualquer exemplo feito por outro, e ele não requer o auxílio de outro de sua própria criação para criar.

Ele criou a terra e suspendeu-a sem esforço, elevou-a sem pilares, reteve-a sem suporte, estabilizou-a sem pernas, protegeu-a de dobraduras e de encurvamentos, defendeu-a contra a desintegração e a divisão. Ele fixou montanhas sobre ela como cepos, solidificando suas rochas, fazendo fluir seus arroios e alargando seus vales. O que ele fez não lhe causou escoamento, o que ele reforçou não lhe trouxe fraqueza. Ele se manifesta sobre a terra com autoridade e grandeza. Ele está consciente do que há no interior por meio do conhecimento e do entendimento. Ele tem poder sobre tudo na terra em virtude de sua sublimidade e dignidade. Nada na terra que ele possa convocar o desafia, nem se opõe a ele para dominá-lo. Nenhuma criatura de pés rápidos pode fugir dele ou superá-lo. Ele não precisa de ninguém que o alimente. Todas as coisas curvam-se diante dele e são humildes diante de sua grandeza. Elas não podem transferir a autoridade dele a qualquer outro, de modo a escapar de seu benefício ou de seu dano. Não há outro que possa igualá-lo.

Ele destruirá a terra depois de tê-la feito existir, até que tudo o que existe se torne inexistente. Mas a extinção do mundo após a sua criação não é mais estranha do que sua própria formação e invenção. Como isso pode ser? Mesmo que todos os animais sobre a terra, sejam pássaros ou bestas, gado estabulado ou em pastagem, de diferentes origens e espécies, pessoas tolas e homens sagazes, todos juntos, tentassem criar ainda que fosse um mosquito, eles não seriam capazes de trazê-lo à existência ou de entender qual é o caminho para sua criação. Seus juízos ficariam desnorteados e erráticos, seus poderes mostrar-se-iam insuficientes e falhos, e eles regressariam desapontados e cansados, sabendo que foram derrotados e admitindo sua inabilidade para produzi-lo e também sabendo que são fracos demais até para destruí-lo.

Seguramente, após a extinção do mundo, Deus, o Glorificado, permanecerá sozinho, com nada ao seu lado. Ele será, após a extinção, como era, antes da produção: sem tempo ou lugar, sem momento ou período. Nesse momento, período e tempo não existirão, e os anos e as horas terão desaparecido. Não haverá nada exceto Deus, o Uno, o Todo-Poderoso. Para ele tudo retornará. A criação de todas as coisas não estava em poder delas, e a prevenção de sua extinção também não. Se tivessem o poder de preveni-la existiriam para sempre.

Quando ele criou tudo no mundo, a criação não lhe trouxe nenhuma dificuldade nem o fatigou. Ele não criou as coisas para aumentar sua autoridade, nem por medo de perda ou dano, nem em busca de ajuda contra um inimigo avassalador, nem para se guardar, por meio de sua assistência, contra qualquer vingança, nem para a extensão de seu domínio, nem para se vangloriar diante de uma parceira, nem porque ele se sentia sozinho e buscava companhia.

Então, após tê-las criado, ele irá destruí-las, mas não porque qualquer preocupação lhe tenha ocorrido quanto à sua manutenção e administração, nem por qualquer prazer que disso possa advir, nem pelo incômodo que qualquer coisa lhe cause. A extensão da vida das criaturas não o cansa, de modo a induzi-lo a uma destruição rápida. Deus, o Glorificado, mantêm-nas com sua bondade, preserva-as com seu comando, aperfeiçoa-as com seu poder.

Então, após destruí-las, ele irá ressuscitá-las, mas não por nenhuma necessidade sua em relação a elas, não para buscar assistência de nenhuma delas conta outra, não para mudar da condição de solidão para a de companhia, nem da condição de ignorância e cegueira para a de conhecimento e busca, nem da condição de escassez e necessidade para a de desnecessidade e abundância, nem da condição de desgraça e humildade para a de honra e prestígio.


 

Comentário

Com Ali ibn Abu Ṭalib (600, 601 ou 607 d.C. – 661 d.C.), o pensamento árabe alcançou, pela primeira vez, um nível de elaboração próximo ao das filosofias grega, indiana e chinesa. E o alcançou por si mesmo, pois a influência das duas primeiras filosofias, bem como do misticismo persa, que seria decisiva no período posterior, ainda não havia ocorrido. Ela só aconteceria, mais tarde, com a fundação da Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikma) de Bagdá e o formidável esforço de tradução, exegese e comentário empreendido durante o califado de al-Ma’mun, de 813 a 833, vindo a culminar na obra de al-Kindi (cerca de 800 d.C. – 870 d.C.).

Para avaliarmos o alcance da realização de Ali, basta ler o sermão acima levando em conta que, ainda em sua geração, os politeístas árabes entendiam seus ídolos de pedra não como representações ou canais de manifestação de deidades ou potências divinas, mas como deuses e deusas em si mesmos, em sua crua materialidade. Embora em linguagem menos abstrata e sofisticada, como aliás convinha à capacidade de entendimento de seus ouvintes, ainda muito próximos das concretudes da existência, várias passagens deste sermão lembram a teologia negativa do advaita vedanta indiano, do neoplatonismo grego ou da mística cristã do Pseudo-Dionísio Areopagita.

Ali afirmou que tudo o que veio a comunicar lhe fora transmitido pelo Profeta Muhammad (cerca de 570 d.C. – 632 d.C.), que lhe ditava e o fazia recitar e escrever cada versículo (ayat) do Corão, instruindo-o sobre o seu sentido literal (tafsir) e o seu sentido oculto (ta’wil), e muitos outros mistérios. O progresso feito nesse aprendizado pode ser atestado pelo famoso hadith (sentença) do Profeta, que afirmou: “Eu sou a cidade do conhecimento e Ali é o seu portão”.

Ali ibn Abu Ṭalib era primo de Muhammad. Foi seu segundo discípulo, depois de Khadija (a primeira esposa do Profeta). E tornou-se, mais tarde, seu genro, ao se casar com Fatimah (a única dos filhos de Muhammad que sobreviveu ao pai). Durante a década de guerra entre os muçulmanos e os idólatras de Meca, ele se destacou como um guerreiro impecável, tanto pelo destemor em frente ao perigo quanto pela nobreza diante do adversário. Todos esses atributos, porém, nunca foram suficientemente valorizados pela maioria de seus contemporâneos. E isso, aparentemente, por três motivos: era mais novo do que os demais notáveis, órfão e extremamente pobre. Em uma sociedade tribal, na qual o prestígio de um homem dependia da idade, dos vínculos familiares e de gestos de generosidade, esses três motivos devem ter pesado para que fosse por três vezes preterido na sucessão de Muhammad. Ele só foi eleito califa (khalifah), isto é, “sucessor”, depois de Abu Bakr, Umar e Uthman. E, mesmo assim, sua indicação, que ele inicialmente recusou, foi violentamente contestada por muitos.

É claro que, nessa altura, outros fatores estavam em jogo. A expansão muçulmana dera origem a um imenso e poderoso império e o califado tornou-se objeto de intensa cobiça. O inescrupuloso Mu’awiyah, então governador da Síria, levantou-se em armas com essa intenção. Para evitar maior derramamento de sangue, Ali aceitou firmar um pacto com o adversário, o que fez com que perdesse o apoio de seus partidários mais intransigentes. E um desses partidários decepcionados o assassinou.

Na sequência, Mu’awiyah apossou-se do poder, depois de ordenar o envenenamento de Hassan (o filho mais velho de Ali) e de derrotar e massacrar Hussein (o segundo filho) e muitos de seus parentes e apoiadores na Batalha de Karbala, no Iraque. Ali foi, depois de Abu Bakr, Umar e Uthman, o último dos “quatro califas divinamente guiados”. Com Mu’awiyah, o califado transformou-se em uma monarquia absoluta, segundo os figurinos bizantino e persa.

Os partidários de Ali e da sucessão do Profeta por meio de sua descendência familiar constituíram a facção xiita, em contraponto à sunita. Devido a certas contingências do atual processo político iraniano, protagonizado por xiitas, muitas pessoas mal-informadas ou midiaticamente desinformadas do Ocidente passaram a associar xiismo a fanatismo religioso. Mas isso não é verdade. Há gente de mentalidade aberta e há fanáticos em qualquer agrupamento humano, religioso ou não.

Os sufis consideram Ali um grande mestre (sheikh) e a maioria das ordens sufis, mesmo sunitas, faz a cadeia de sucessão dos mestres derivar do Profeta Muhammad por meio dele.

São curiosos os movimentos que ocorrem no interior de nossas consciências. Minha intenção inicial foi traduzir um elogio aos filósofos neoplatônicos escrito pelo imperador pagão Juliano. Mas uma inesperada associação de ideias levou-me a Ali. Depois, percebi que, para além das diferenças epidérmicas, há muitas semelhanças nas trajetórias desses dois grandes homens: ambos primaram pela nobreza de caráter e pela elevação espiritual; ambos foram vítimas de seu tempo; ambos seriam redimidos pela posteridade.


 

[*] Traduzido por JTA a partir da tradução inglesa, disponível em http://www.nahjulbalagha.org/SermonDetail.php?Sermon=185