Ondas da Beleza (por Shankaracharya)

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1.

Só em conjunto contigo, Shiva ganha o privilégio de ser soberano.

De outro modo, ó Shakti, o Deus não consegue sequer se mover.

Assim, como poderia quem não tem méritos te saudar ou louvar,

Ó Deusa, a ti que Hara, Hari, Viriñca [1] e tantos outros adoram?

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2.

Viriñci [2], recolhendo os menores grãos de poeira de teus pés de lótus,

Criou todos os mundos, não deixando mais nada para ser desejado:

Mundos que Shauri [3], de mil cabeças, carrega com grande esforço;

Grãos que Hara, pulverizando, pôs sobre o corpo como cinza sagrada.

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3.

Tu és a cidade insular dos sóis, iluminando a escuridão do ignorante;

A inesgotável corrente do mel das flores da consciência para o estúpido;

O rosário das preciosas gemas para atender ao desejo do destituído;

O Javali [4], que resgata quem submergiu no oceano do nascimento.

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Explicação

O texto recriado em português acima contém as três primeiras estrofes do Saundarya Lahari (As Ondas da Beleza). Este é um longo poema em louvor à Deusa atribuído a Shankaracharya, o grande filósofo indiano do século 9 d.C., considerado o principal revivificador do hinduísmo. Foi composto em sânscrito, em 100 estrofes, de quatro versos cada uma.

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As escrituras hinduístas são, grosso modo, divididas em dois conjuntos: os shruti (“aquilo que é ouvido”), textos que, segundo a tradição, não possuiriam autores humanos, tendo sido recebidos pelos grandes rshis (clarividentes e clariaudientes) diretamente do plano divino; e os smriti (“aquilo que é lembrado”), textos que, apesar de divinamente inspirados, expressariam as opiniões, nem sempre coerentes, de seus autores históricos.

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Quanto a tal divisão, o Saundarya Lahari apresenta uma condição peculiar. Pois suas 41 primeiras estrofes enquadram-se na categoria shruti, enquanto as 59 estrofes seguintes correspondem à classificação smriti.

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Uma lenda até certo ponto divertida explica tal peculiaridade. Segundo esta, Shankaracharya visitou Shiva e Párvati no Monte Kailasa, e recebeu do próprio Deus um manuscrito completo do poema, com 100 estrofes. Porém, quando estava indo embora, foi interceptado no caminho por Nandi, o principal atendente de Shiva. Nandi perguntou-lhe o que levava. E, ao ouvir a resposta do filósofo, pegou para si 59 estrofes e deixou para Shankaracharya apenas 41.

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Shankaracharya retornou a Shiva para se queixar. Mas, diante de sua reclamação, o Deus apenas sorriu. E lhe disse que ficasse com as 41 estrofes originais e compusesse ele mesmo as outras.

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Isso dá às 41 estrofes iniciais do poema um status semelhante ao dos Vedas. E, por isso, são atribuídos a elas poderes mântricos e até mesmo mágicos. A primeira estrofe, em especial, é considerada a quintessência da sabedoria. E as duas estrofes seguintes de certa forma a desenvolvem.

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Recriei essas três primeiras estrofes em português a partir de uma famosa tradução inglesa feita por Subhahmanya Shastri e Srinivasa Ayyangar, publicada em Madras (atual Chennai) em 1937. Esse obra, extremamente erudita, com introdução, texto em sânscrito, transliteração, tradução, comentários, diagramas e apêndices pode ser acessada na internet em https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.21838/page/n7/mode/1up

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Alguns estudiosos duvidam que o Saundarya Lahari tenha sido realmente composto por Shankaracharya. E pode ser que tenham razão. Mas, como essa suposta autoria foi consagrada pela tradição, eu a adotei aqui, inclusive no título da postagem, que não tem pretensão de rigor acadêmico.

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Notas

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[1] Hara, Hari e Viriñca são, respectivamente, epítetos de Rudra, Vishnu e Brahma, que, juntos, compõem a Trimurti (Três Formas). A Trimurti personifica três das Cinco Atividades (Panchakriya) de Shiva: a Transformação (Rudra), a Manutenção (Vishnu) e a Criação (Brahma). As outras duas atividades são o Obscurecimento da Consciência e o Esclarecimento da Consciência, personificadas por Maheshvara e Sadashiva.

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[2] Viriñci é o mesmo Viriñca, isto é, Brahma, o Criador.

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[3] Shauri é um dos nomes de Vishnu, o Mantenedor. Neste verso, Shankaracharya associa Shauri a Shesha, a mitológica Serpente de Mil Cabeças, que sustenta em suas costas todo o Cosmo e sobre a qual Vishnu repousa reclinado.

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[4] O Javali Selvagem é um dos avatares de Vishnu, que, com seus dentes, resgatou os mundos, que haviam sido submergidos no Oceano Primordial por um demônio.

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Imagem ao alto: foto de Márcia Micheli

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