Mahashivaratri 2024

Dakshinamurti

Sadashiva na forma do Iogue Primordial.

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“No Ápice do Empíreo, Ele expressa-se como Tattva;

Ele, o Senhor, expressa-se como Akaram e Ukaram (1).

No Ápice do Empíreo, Ele dança a Dança dos Tattvas:

Ele que é, de fato, o Ser de Si Mesmo”

(Tirumular, Tirumandiram, Estrofe 889)

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Nesta sexta-feira, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, comemora-se o Mahashivaratri de 2024. A data é, portanto, duplamente auspiciosa. Festival móvel, o Mahashivaratri é definido com base no calendário lunissolar indiano.

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O Mahashivaratri, a Grande Noite de Shiva, ocorre no período em que, segundo a Tradição, o poder de Shiva Tattva, o Princípio de Shiva, se encontra mais próximo do planeta Terra e mais acessível aos seus habitantes. Trata-se, portanto, de uma conjuntura extremamente favorável. E sua celebração, que remonta a tempos imemoriais, exalta a vitória sobre a escuridão e a ignorância, tanto no âmbito individual quanto coletivo.

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Aqui, cabe a pergunta: quem ou o que é Shiva?

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No Shaiva Siddhanta, a tradição dos chamados “iogues perfeitos” da linhagem shivaísta, a produção da realidade múltipla e relativa a partir da Realidade Unitária e Absoluta é descrita pelo modelo dos 36 tattvas, ou instâncias da manifestação. Uma reflexão sobre os três primeiros tattvas oferece algum subsídio para responder à pergunta acima.

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Nesse modelo, a Realidade Unitária e Absoluta, ela mesma, é chamada de Parashiva. Essa palavra é apenas uma conveniência de comunicação, que atribui um nome ao que é, de fato, inominável. Pode ser deficientemente traduzida como “Shiva Supremo” ou “Aquilo que está além de Shiva”.

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Parashiva é o atattva, a não instância. É o verdadeiro mistério: indescritível, inimaginável, inconcebível. E, no entanto, Parashiva não está distante. Nem é um outro. Pois é o que realmente existe em tudo o que existe.

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Em sua condição primordial e ensimesmada, o “sim” e o “não” são indistinguíveis. Shiva, seu primeiro tattva, é o “sim” que desencadeia o processo de manifestação. É o “sim” que, submetido a sucessivas veladuras (“nãos”), engendra, no limite, toda a realidade fenomênica. Em Shiva, o cosmo inteiro repousa em estado puramente subjetivo, potencial e incriado.

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Shiva é pura consciência (saber ser), pura potência (poder ser), puro auspício (querer ser). Por meio da Shakti, o segundo tattva, a consciência se objetiva, a potência se transforma em ato, e o auspício se torna produtivo. O saber ser, o poder ser, o querer ser engendram o ser.

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O ser, ainda indiferenciado no âmbito do segundo tattva, constitui-se como um ente identificável na instância seguinte. E esse ente, que corresponde ao terceiro tattva, recebe o nome de Sadashiva, o Shiva Eterno. Ao manifestar-se como Sadashiva, Parashiva afirma: “Eu sou Isto”.

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Temos assim três “momentos” da processão da Realidade Unitária e Absoluta rumo à realidade múltipla e relativa: a afirmação (Shiva), a substantivação (Shakti) e a entificação (Sadashiva).

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Diz-se que Sadashiva é “Aquele que desvela a consciência”. Pois é dessa elevadíssima instância que provém Guru Tattva, o Princípio do Guru, que permite, sustenta e orienta nossa evolução, vida após vida. Esse Princípio manifesta-se, simbólica ou efetivamente, na forma do Adi Yogi, o Iogue Primordial. Por isso, para os praticantes de Yoga, o Mahashivaratri reveste-se de uma importância ainda maior, pois Sadashiva, que é, afinal, o próprio Shiva, constitui a Fonte Eterna da Tradição.

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Ao contrário de outros festivais indianos, o Mahashivaratri é sempre celebrado à noite. E possui um caráter solene e introspectivo. Lembremos que o shivaísmo é uma tradição lunar. Não é por acaso que, na iconografia, os longos cabelos de Shiva são enfeitados com a imagem da lua crescente, a lua do quinto dia. Essa tradição noturna, associada ao culto dos mistérios e ao conhecimento esotérico, parece ter suas raízes no xamanismo pré-histórico. Um dos epítetos do xamã é “aquele que vê no escuro”.

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Vale acrescentar, aqui, mais um comentário. Apesar de ser extremamente inclusiva, a tradição shivaísta é, ainda assim, uma tradição masculina. Daí a forma masculina atribuída à figura de Shiva. Mas é preciso considerar que essas instâncias, em si mesmas, estão muito acima de qualquer diferenciação de gênero. Ademais, se Shiva, o Pai Primordial, constitui a expressão do Princípio Masculino, é somente por meio da Shakti, a Mãe Primordial, expressão do Princípio Feminino, que toda a sua potência se efetiva. E as instâncias que sucedem ao segundo tattva e, por extensão, a inteira realidade fenomênica trazem a marca da Mãe. Por isso, Sri Aurobindo afirmou: “Quando olha para frente, tudo o que Ele vê é Ela”.

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O tema é aprofundado em outros artigos deste blog, em especial no texto “A realidade absoluta e suas manifestações primordiais” <https://josetadeuarantes.wordpress.com/2012/02/16/a-realidade-absoluta-e-suas-manifestacoes-primordiais/&gt;. Para os eventuais interessados, também recomendo a leitura do texto “Versos Sagrados (do Tirumandiram) <https://josetadeuarantes.wordpress.com/2021/02/05/versos-sagrados-excertos-do-tirumandiram/&gt;.

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Comemoremos o Mahashivaratri de 2024 honrando a memória das incontáveis gerações que nos precederam. E transmitindo luz e conhecimento àqueles que virão.

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Om Namah Shivaya.

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Nota

(1) A letra A (Akaram) simboliza Shiva; a letra U (Ukaram) simboliza Shakti.