Memória afetiva

Uma praia cubana: cenário paradisíaco que teria sido varrido do mapa se a guerra de 1962 houvesse acontecido

Muitos chamam de “memória afetiva” a lembrança do sabor das macarronadas feitas pela mãe nos domingos ou dos brigadeiros nas festas de aniversário. Tenho outra “memória afetiva”, relacionada a um acontecimento bem menos palatável, ocorrido há meio século, mais precisamente na segunda quinzena de outubro de 1962. Refiro-me à chamada “Crise dos Mísseis”, que levou o mundo a um passo do precipício da guerra nuclear global.

Eu tinha, então, 11 anos. E, em grande parte devido à influência de meu pai, era um assíduo leitor de jornais, especialmente das páginas de política internacional.

Meu pai, por sua vez, embora tenha sido obrigado a deixar a família de origem em Minas Gerais aos 14 anos para vir trabalhar duro em São Paulo, não podendo por isso continuar seus estudos, era um autodidata e um homem muito bem informado para os padrões da época. Lia o que lhe caía nas mãos e tinha uma excepcional abertura para as diferenças culturais. Lembro-me que possuímos em casa discos de vinil (long playings, como eram então chamados), com músicas árabes, armênias, bávaras, chinesas, indochinesas etc. – coisas bastante exóticas naquele tempo.

Devido a um senso de justiça inato e a uma generosidade que era nele inteiramente natural (foi o homem mais generoso que eu conheci), tornou-se um simpatizante da causa socialista. Seu socialismo não derivava de lucubrações sobre a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, a luta de classes e a missão histórica do proletariado: nenhum desses frágeis tijolos conceituais com os quais o marxismo pretendeu construir uma fortaleza teórica e prática indestrutível. Não. Seu socialismo derivava de fatores muito mais simples e verdadeiros: senso de justiça e generosidade. Nunca participou de partidos, felizmente. Mas fazia doações, votava nos candidatos “de esquerda”, e, acima de tudo, nutria enorme admiração pela hoje extinta União Soviética.

Lembro-me como, nas festas e reuniões sociais, ele enfrentava as opiniões conservadoras de parentes e amigos – pessoas influenciadas pelo anticomunismo visceral da “Guerra Fria” e que, depois, viriam a apoiar o Golpe Militar de 1964 e trocar seus anéis de verdade por alianças de latão, nas quais estava escrito “Eu dei ouro para o bem do Brasil”. Meu pai defendia seu ponto de vista com veemência, mas jamais ofendia os oponentes e nem lhe passava pela cabeça abrir mão de uma amizade por motivos ideológicos. Como não lhe passava pela cabeça obter qualquer vantagem pessoal por meios políticos. As discussões terminavam em risadas e tapinhas nas costas.

Pois bem, naquela fatídica quinzena de outubro de 1962, muitos desses adversários amigos telefonaram para nossa casa à noite, em busca de consolo, pois não conseguiam dormir devido ao medo daquela que, se houvesse ocorrido, teria sido a guerra final. Explico. Em meados daquele ano, depois de reiteradas tentativas norte-americanas de derrubar o regime castrista (como a fracassada invasão da Baia dos Porcos, promovida pela CIA em abril de 1961), os líderes soviéticos e cubanos, com Nikita Khrushchev e Fidel Castro à frente, decidiram, secretamente, instalar mísseis balísticos com ogivas nucleares em Cuba. Em 14 de outubro de 1962, um avião espião U-2, da Força Área dos Estados Unidos, fotografou as bases para estocagem e lançamento dos mísseis que estavam em construção. Seguiu-se uma febril movimentação nos bastidores, da qual o mundo só tomaria conhecimento muito tempo depois. Em 22 de outubro de 1962, finalmente, o assunto veio a público. Após considerar diversas opções e hesitar entre elas por vários dias, o presidente norte-americano John Kennedy anunciou, em cadeia nacional de televisão, o bloqueio naval – ou, com foi eufemisticamente chamada, a “quarentena” – de Cuba.

O bloqueio iniciou-se às 10 horas da manhã do dia 24, no horário local. Um impressionante aparato militar norte-americano foi posicionado em torno de Cuba, para impedir que navios soviéticos, com mísseis a bordo, que continuavam navegando rumo à ilha, alcançassem seu destino. Todas as forças capazes de intervir no processo – Estados Unidos, União Soviética, Otan, Pacto de Varsóvia, China etc.— entraram em estado de alerta máximo. E os amigos de meu pai perderam o sono, sem saber se veriam o dia de amanhã.

Nenhum analista, por melhor preparado e informado, poderia dizer no que aquilo iria dar. Nem mesmo os principais protagonistas sabiam. Como se veio a descobrir depois, a despeito da intensa espionagem praticada na época, os Estados Unidos e a União Soviética desconheciam-se profundamente. E cada parte tendia a superestimar o poder do adversário. Mas meu pai tratou de tranquilizar seus interlocutores. Ele não possuía nenhuma base objetiva para isso. Falava por pura bondade. Como tinha os líderes soviéticos em alta conta, imaginava, ingenuamente, que estes eram tão humanitários e éticos quanto ele mesmo. Se ele seria incapaz de levar uma farsa diabólica como aquela adiante, Khrushchev também não iria aceitar a “provocação de Kennedy”, e, no momento oportuno, mandaria seus navios darem meia-volta.

Saadi de Shiraz, o famoso poeta e mestre sufi do século XIII, colocou na boca de um de seus personagens esta frase: “uma mentira bem intencionada vale mais do que a verdade portadora de infortúnio”. Movido pela melhor das intenções, meu pai não mentiu, pois acreditava realmente no que disse. E, como ele disse, eu também acreditei. Aquela meia verdade, açucarada e inconsistente como algodão doce, acabou virando uma verdade inteira. Pois, não por bondade, mas por cálculo, Khrushchev agiu exatamente como meu pai previu que o faria. Negociações secretas levaram os antagonistas a um acordo: os soviéticos desmontariam suas bases em Cuba; em contrapartida, os norte-americanos fariam o mesmo com suas instalações na Turquia. Além disso, os Estados Unidos se comprometiam a não invadir o território cubano.

Observado com meio século de distanciamento, pode-se dizer que foi um arranjo rigorosamente simétrico. Mas a mídia pró-americana exultou com aquilo que foi vendido aos seus crédulos consumidores como uma espetacular “vitória da democracia”. Também na União Soviética, o comportamento errático de Khrushchev em todo esse imbróglio, com rompantes temerários e recuos vergonhosos, foi considerado um fiasco, e pesou decisivamente para que uma sinistra conspiração palaciana o depusesse do poder menos de dois anos depois.

Ao escrever este artigo, inspirado pelo cinquentenário de um acontecimento que ajudou a moldar minha “memória afetiva”, eu, que não acredito em coincidências (pois acho que o fato que parece fortuito em um nível de realidade está rigorosamente determinado em outro nível mais profundo), percebi, entre os dados da história geral e da história pessoal, uma curiosa sincronicidade. A “Crise dos Mísseis” começou no dia 14 de outubro, aniversário do nascimento de meu pai, ocorrido em 14 de outubro de 1927. E chegou perto do ponto de ebulição no dia 27 de outubro, quando um avião espião norte-americano U-2 penetrou inadvertidamente no espaço aéreo soviético, quase provocando um combate entre esquadrilhas dos dois países, com consequências imprevisíveis. Esse dia também viria a ser o do aniversário da morte de meu pai, ocorrido em 27 de outubro de 1982.

Quem não o conheceu poderá perceber, pelas datas, que ele morreu extremamente cedo, com apenas 55 anos. Dotado de enorme disposição para o trabalho e muita criatividade, mas de pouco tino administrativo, meu pai enriqueceu por duas vezes, e, por duas vezes, perdeu tudo. Seu coração não resistiu à segunda perda. Estressado até o limite do que podia aguentar, sofreu um infarto fulminante – um ato providencial de beneficência e misericórdia que abreviou seu sofrimento.

Onde quer que se encontre, acredito que agora está melhor. Pois trilhou o caminho reto e deixou atrás de si um rastro de amor e bondade. Viveu em um tempo traumatizado por guerras quentes, com milhões de mortes e incontáveis sacrifícios: a Segunda Guerra Mundial, as guerras de libertação nacional da Ásia e da África, as guerras do Oriente Médio. Viveu também em um tempo aterrorizado pela “Guerra Fria”, com a manipulação das consciências pela propaganda ideológica e a chantagem nuclear das duas superpotências. Em cada situação concreta, posicionou-se do lado que lhe pareceu o mais justo, em busca da luz do final do túnel.

Com o passar dos anos, seu pensamento se matizou, se nuançou, podendo reconhecer, além do preto e do branco, uma infinita paleta de cores. Transitando da perspectiva ideológica para a ontológica, seus olhos buscaram ir além do horizonte do tempo, para contemplar a paisagem da eternidade. Embora gozasse de boa saúde, ele sabia, em algum recesso obscuro de sua consciência, que estava para morrer. E fez suas preparações. Eu o acompanhei em uma última viagem a Minas Gerais, onde foi pagar uma antiga promessa e tentar promover a paz e a concórdia entre dois irmãos que haviam brigado.

Foi tão súbita sua morte que cheguei a duvidar dela. Eu havia almoçado com ele naquele dia e sua saúde parecia perfeita. Poucas horas depois, meu cunhado me ligou, comunicando a notícia infeliz. Durante o velório, o rosto de meu pai manifestava tanto viço que, apesar de adulto e de me pautar, até demais, pela razão, comecei a fantasiar que ele ainda poderia estar vivo, e, a qualquer momento, abriria as pálpebras e voltaria a respirar. Anos mais tarde eu li que essas fantasias realmente são produzidas por pessoas que sofrem uma perda repentina. Somente na manhã do dia seguinte, quando alguns sinais inequívocos da morte física se fizeram notar, foi que reconheci o que não podia mais ser ocultado.

Sofri a dor dessa perda em todas as células do meu corpo. Depois me acalmei. E, durante um ano, mais ou menos, sonhei quase todas as noites com ele. Eram sonhos leves, sem nada que pudesse suscitar o medo ou o pesar. Às vezes, durante o sonho, eu me surpreendia com sua presença, e falava: “Mas você não morreu? O que está fazendo aqui?” Ele não dizia nada, apenas me olhava, e sorria. Foi, para mim, um período de intensa elaboração interior. E também exterior, pois, poucos meses depois da morte de meu pai, minha primeira filha nasceu.

Passado aquele ano, os sonhos cessaram. Ficou apenas uma memória calma e suave, que a recordação de uma palavra ou de um gesto às vezes reaviva.