O lingam de pedra

*

A narrativa sobre a manifestação de Shiva na forma do lingam aparece no Shiva Purana. O texto é rico em detalhes e enfeites mitológicos. Mas vou simplificar. Brahma e Vishnu disputaram para saber quem era o maior dos deuses. E a disputa evoluiu para uma conflito de enormes proporções, que ameaçava a própria estabilidade do Cosmo. Sabendo disso, Shiva emergiu de sua existência incorpórea e apareceu no campo de batalha como uma gigantesca coluna de fogo, que se prolongava indefinidamente para baixo e para cima.

*

Após muitas peripécias, que duraram um tempo incontável, os dois deuses, reconhecendo sua incapacidade de encontrar as extremidades da coluna, e arrependidos da presunção de ocupar um lugar que não lhes pertencia, uniram as mãos e curvaram as cabeças em sinal de reverência diante da expressão corpórea de Shiva, que saiu de dentro da coluna.

*

Depois de perdoá-los e abençoá-los, e de consagrar aquela data como o Shivaratri, o mais santo dos dias santos, Shiva disse a Brahma e Vishnu que a ilusão e o falso orgulho em que incorreram se deveram ao fato de não haverem meditado suficientemente nele, o Senhor Supremo. E ensinou-lhes a recitar o Om, o grande mantra auspicioso.

*

Assim termina esta parte do relato.

*

A prodigiosa coluna de fogo é o lingam primordial. Mas contemplá-lo estava além da capacidade humana. Por isso, como um ato de compaixão pela humanidade, Shiva manifestou-se na forma de um lingam de pedra: o monte Arunachala.

*

Diz o Shiva Purana: “Somente Shiva é glorificado como Niskala (sem nome e sem forma), pois ele é idêntico ao supremo Brahman. Ele também é Sakala, pois tem uma forma corpórea. Ele é Niskala e Sakala. Em seu aspecto Niskala, é adequado adorá-lo como lingam. Em seu aspecto Sakala, a adoração da forma corpórea é apropriada” (Livro 1, Capítulo 5, Versículos 10 a 12).

*

Questionado certa vez sobre a santidade especial de Arunachala, Sri Ramana Maharshi (1879 – 1950) afirmou que lugares como o monte Kailash, Chidambaram, Varanasi ou Rishikesh são sagrados por serem as moradas de Shiva. Mas Arunachala é o próprio Shiva.

*

Ao longo dos séculos, muitos santos e sábios foram atraídos por Arunachala. No século 7 d.C., Sundarar, Appar e Sambandar, os três mais proeminentes Nayanars. Literalmente, “Cães de Shiva”, o termo Nayanars designa os 63 santos shivaístas cultuados especialmente no sul da Índia. No século 9, foi a vez de Manikkavasakar, o grande poeta e santo tâmil.

*

No século 16, Guhai Namasivaya, seu discípulo Guru Namasivaya, e Virupaksha Deva deixaram Karnataka para viver em Arunachala. Há muitas histórias interessantes sobre esses três grandes ascetas shivaístas. Mas ficam para outra ocasião. Por enquanto, é suficiente dizer que Guhai Namasivaya habitou uma das cavernas do monte, ainda hoje conhecida por seu nome. E que Virupaksha Deva residiu em outra caverna, que também leva seu nome.

*

Depois de viver na caverna Guhai Namashivaya por um curto período, Ramana Maharshi mudou-se para a caverna Virupaksha, onde permaneceu de 1899 a 1916. Foi lá que escreveu um de seus primeiros poemas, intitulado Sri Arunachala Mahatmyan (A Glória de Sri Arunachala). Nesse poema, Ramana Maharshi colocou na boca no próprio Shiva a seguinte estrofe, aqui recriada a partir da tradução inglesa:

*

“Embora na verdade ígneo, minha aparência como uma colina sem brilho

É, neste local, um ato de graça para a manutenção do mundo.

Também habito aqui como um Siddha – sabe disto.

Há em mim muitas cavernas gloriosas, cheias de todos os tipos de prazeres”

*

Na estrofe introdutória a este e outros poemas, que formam o Sri Arunachala Stuti Panchakam (Cinco Hinos a Sri Arunachala), Muruganar, um renomado discípulo de Ramana Maharshi escreveu:

*

“A aparição de Annamalai (Shiva) diante de Brahma e de Vishnu,

Que se angustiaram por não poder conhecê-lo,

Simboliza o Eu, que brilha por si mesmo no Centro do Coração,

Enquanto o intelecto e o ego buscam confusamente por ele.”

*

E o grande arremate vem destas duas estrofes do ágama Sarvajnanottara (O Pináculo de Todo Conhecimento), que Ramana Maharshi traduziu do sânscrito para o tâmil, e que se apresenta como um ensinamento do próprio Shiva a seu filho mitológico Murugan:

*

“Arranca pela raiz distinções como

‘Shiva é diferente de mim’, ‘Eu sou diferente de Shiva’.

Pratica a atitude não-dual que diz:

‘Eu não sou outro senão Shiva’

*

Fortalecido pela perspectiva não-dual,

Aquele que habita o Eu, para sempre e em todos os lugares,

Vê apenas Shiva, o Eu Supremo, permeando todas as formas.

Não há dúvida sobre isto.”

*

Om Nama Shivaya.

*

Foto ao alto: o monte Arunachala, fotografado por Márcia Micheli.

*