O Poder da Palavra

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“A palavra que todos os Vedas recitam e que todas as austeridades proclamam (…) essa palavra declaro a ti brevemente: é o Om! Essa sílaba, realmente, é Brahman! Essa sílaba, de fato, é o Supremo! Quem a conhece de verdade terá tudo o que deseja. Ela é o seu melhor apoio. Ela é o supremo apoio” (Katha Upanishad).

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Na cosmogonia não-dual do Shaiva Siddhanta, a tradição místico-filosófica dos chamados “iogues perfeitos” (siddhas), a sílaba Om é considerada a primeira manifestação substantiva do Real. Não é apenas a “palavra de Deus” ou a “a voz de Deus”, como às vezes se diz. Mas o próprio Deus, que emerge de sua absoluta autoimersão e se põe em movimento, extrafísico ou metafísico.

Por meio do Om, a autoconsciência pura – silenciosa, indiferenciada, inarticulada – do Divino (Shiva) vem à substância. Por meio do Om, o Poder-Ser vem ao Ser. Por meio do Om, o Real manifesta seu Mistério para Si-Mesmo. E inicia o processo de realização de suas incontáveis realidades.

Om, que recebe a denominação de Paranada (Som Supremo) ou Pranava (Som Primordial), é a sílaba totipotente, cuja fragmentação e diferenciação origina todos os fonemas: os Bijas (Sementes Mântricas) e os Aksharas (Sílabas Irredutíveis). E, da articulação desses fonemas, nasce o Discurso Divino – vale dizer, a produção das realidades numênica e fenomênica, com suas miríades de entes e fenômenos.

Toda a Manifestação contém, portanto, um elemento linguístico. Assim, o Macrocosmo e o Microcosmo são atravessados por padrões linguísticos que os conectam e articulam. E engendram estruturas que cascateiam como fractais pelos vários estratos da Realidade.

Conforme afirmou Gershom Scholem (Berlim, Alemanha, 1897 – Jerusalém, Israel, 1982), referindo-se a uma concepção fundamental da Qabalah judaica, o Nome de Deus é a origem metafísica da linguagem, que constitui a exposição e o desdobramento desse Nome. Isso explica a enorme importância atribuída pelos cabalistas à simples palavra humana.

É importante dizer que, embora possa ser expresso por meio do som, o Pranava não é o som na acepção material da palavra. Mas o protossom, que, somente após muitas “veladuras”, pode ser apreendido como som no plano sensível.

Sendo Om a primeira manifestação substantiva do Real, tudo o que dele provém é dotado de substância. E manifesta-se, de forma perceptível, em uma ou outra instância da Realidade – eventualmente por meio de personificações. Assim, no relato de suas próprias experiências e de experiências de outros místicos, o grande mestre sufi Ibn Árabi (Múrcia, Espanha, 1165 – Damasco, Síria, 1240) referiu-se a personificações das suras Al-Fatiha e Ya-Sin. Esses capítulos do Nobre Corão apareceram à consciência suprassensorial e supramental do místico andaluz não como letras inertes dispostas sobre o papel, mas como personagens ativos, dotados de corporeidade, que falavam e intervinham eficientemente no mundo.

Daí a efetividade de certas frases, palavras, sílabas ou letras. Inseridas em um discurso, elas lhe conferem um valor que independe daquilo que o discurso literalmente afirma. É o caso da “Basmallah” no contexto islâmico, ou da expressão “Sharavana Bhava” no contexto shivaísta, ou das derivações do Tetragrama Inefável no contexto cabalista. Há muitos outros exemplos. No contexto cristão, há mais entendimento do que aparenta na frase “o Nome do Senhor Jesus tem poder”.

Isso porque, na perspectiva mística, o nome é a coisa nomeada. Mais ainda: o nome precede a coisa nomeada. Assim, o poder do mantra decorre menos de seu sentido inteligível (artha) do que do poder (shakti) das sílabas em si mesmas. Isso explica a efetividade de certas técnicas de permutação de sílabas ou letras, como o Tzeruf, ensinado pelo grande mestre cabalista Abraham Abulafia (Saragoça, Espanha, 1240 – Comino, Malta, 1291).

Mas é preciso distinguir, como faz Ibn Árabi, os “Nomes” dos “nomes dos Nomes”. Os Nomes são realidades divinas. Os nomes dos Nomes são suas expressões humanas. No nível mais elevado, os Nomes são pontes ou linhas de transmissão entre o Real e suas Realizações.

O tema é imenso. Este é apenas um primeiro balbucio. Outros virão, Insh’Allah.

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Imagens

No alto da postagem: a Deusa Párvati praticando japa (recitação do mantra).

No pé do postagem: o Om em tâmil, no interior da estrela de seis pontas (diagrama do Filho Arquetípico).

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