Hino em louvor à Grande Deusa composto por Adi Shankaracharya (séc. 9 d.C.) [1]
I
Eu busco refúgio em Tripurasúndari, a esposa daquele que tem três olhos [2],
Que vaga pela floresta de Kadamba [3] e refresca como a névoa a legião dos sábios,
Cujas nádegas são mais altas do que as montanhas e é servida pelas donzelas celestiais,
Cujos olhos são como lótus que desabrocham e é escura como nuvens recém-formadas.
II
Eu busco refúgio em Tripurasúndari, a esposa daquele que tem três olhos,
Que vive na floresta de Kadamba, segurando em sua mão a vina dourada,
Adornada com um colar de pedras preciosas e exibindo o prazer que vem do néctar,
Que concede a misericórdia e a graça, a bela Deusa de olhos radiantes.
III
Por ela, que ostenta esplêndida guirlanda sobre o peito,
Cujos seios são firmes como rochedos e que brilha no bosque pela graça de Shânkara,
Cujas faces são rubras de embriaguez e que é a morada da doce fala e da doce canção,
Por essa mulher tão intensamente azul, como em um jogo, somos todos protegidos.
IV
Eu busco refúgio em Tripurasúndari, a esposa daquele que tem três olhos,
Que habita o coração da floresta de Kadamba e está sempre próxima à mandala dourada,
Que vive em cada um dos seis lótus [4] e se manifesta aos siddhas [5] como jorro de luz,
Cuja cor é imitada pelo hibisco e que tem a fronte enfeitada pela lua.
V
Em ti, que entre os seios abrigas a adorável vina e és adornada por cabelos cacheados,
Que resides no coração do lótus e és inimiga dos que têm o intelecto astucioso,
Cujos olhos são rubros de intoxicação e que enamorastes até os inimigos do Cupido,
Que és filha do sábio Matanga [6], nesta doce fala, Tripurasúndari, eu busco refúgio.
VI
Nela, que carrega a primeira flor do desejo, vestida de azul pontilhado de vermelho,
Que segura em sua mão uma taça de mel e revira os olhos, inebriados de intoxicação,
Medite nela, a bela senhora das três cidades, cujo coração se eleva sobre firmes seios.
A negra de cabelos soltos, a esposa daquele que tem três olhos, nela eu busco refúgio.
VII
Ela, que se maquia com cúrcuma e cujos cachos são untados com almíscar,
Que exibe um sorriso suave, enquanto segura o arco, o laço e o aguilhão,
Cuja roupa é decorada com flores vermelhas e que a todos deixa enamorados,
Que brilha entre a guirlanda de hibiscos, nela eu medito, antes de recitar o mantra.
VIII
Eu reverencio a Suprema Mãe do Universo, a esposa daquele que tem três olhos,
Que é servida e coberta de jóias pelas donzelas celestiais,
E cujos cabelos são penteados por Lákshimi e Sarásvati [7],
A esposa do Senhor Shânkara, a Suprema Mãe do Universo, ela eu reverencio.
Notas
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[1] Tripurasúndari, a Senhora das Três Cidades, é um dos nomes da Grande Deusa, que é o aspecto feminino da Divindade Única. Alude à sua condição de Senhora dos Três Reinos (Bhuloka, o reino terrestre; Antarloka, o reino espiritual; e Shivaloka, o reino celestial), Senhora das Três Shaktis ou Poderes (Jñana, a sabedoria; Iccha, a vontade; e Kriya, a ação), Senhora dos Três Gunas ou Forças (Tamas, a imobilidade; Rajas, o movimento; e Sattva, a sublimação) e Senhora dos Três Nadis ou Canais de Energia (Ida, o canal lunar; Píngala, o canal solar; e Sushumna, o canal central). E também à sua natureza tríplice de Jovem, Mãe e Anciã.
Ashtakam significa poema em oito estrofes. Este poema foi escrito por Adi Shankaracharya em sânscrito. Recriei há muito tempo em português a partir de uma tradução em língua inglesa. E fiz algumas pequenas modificações nesta postagem.
O poeta ora se refere à Deusa, na terceira pessoa, ora fala diretamente a ela, na segunda pessoa. E esse jogo confere ao poema um dinamismo especial.
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[2] “Aquele que tem três olhos” é Shiva, cujo “terceiro olho” é um símbolo da visão transcendental, capaz de ultrapassar o mundo ilusório da dualidade e alcançar a Unidade Absoluta. O poema também se refere a Shiva como Shânkara, o “Pacificador”.
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[3] Kadamba, a floresta mitológica de um milhão de árvores, é uma metáfora do universo.
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[4] Os seis lótus são os seis chacras (centros de energia sutil) principais, situados ao longo do Sushumna (o canal central de energia sutil). Simbolicamente, representam as seis moradas da Shakti, o Princípio Feminino. O sétimo chacra principal, o Sahasrara, situado no topo de cabeça, é a morada de Shiva, o Princípio Masculino.
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[5] Siddhas são os iogues perfeitos, que alcançaram o mais elevado estágio de autorrealização.
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[6] Mencionado no Ramayana e no Mahabharata, os maiores textos da literatura indiana, Matanga era considerado um pária, por ter nascido da união sexual entre uma mulher e um homem de castas diferentes. Humilhado pelos brâmanes (indivíduos da casta sacerdotal), dedicou-se por milhares de anos a disciplinas ióguicas até alcançar o status de grande rishi (sábio). Uma das numerosas formas assumidas pela Deusa é a de Matangi, a filha de Matanga. Representada como uma bela adolescente de pele escura, pertencente à casta mais baixa, intensamente sensual e reinando sobre o mundo da impureza e da poluição, Matangi é a própria negação dos tabus e preconceitos incorporados à religiosidade convencional. É tida como a inspiradora dos poetas realmente criativos e a condutora daqueles que buscam o conhecimento esotérico.
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[7] Lákshimi e Sarásvati são importantes deusas do panteão indiano. A primeira está associada à abundância, e a segunda, à sabedoria. Matangi é considerada uma forma tântrica de Sarásvati.
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