Origens da matemática: Aryabhata

Aryabhata

Estátua moderna representando Aryabhata, instalada no campus do Inter-University Centre for Astronomy and Astrophysics (IUCAA), em Puna, Índia.

 

Os livros de popularização da história da matemática tendem a valorizar unilateralmente o papel dos gregos. De fato, as contribuições dos filósofos, matemáticos e cientistas que atuaram no mundo helenizado foram enormes. Mas eles não foram os únicos. Nem os primeiros. Já tratamos sumariamente das descobertas matemáticas de babilônios e egípcios. Outras civilizações, como a indiana, também deixaram legados excepcionais. Devemos aos antigos indianos grande parte da matemática que utilizamos até hoje.

O primeiro e maior matemático indiano do chamado “Período Clássico” foi Aryabhata, nascido em 476 d.C. e morto em 550 d.C. [1]. Sua vida transcorreu durante a vigência da Dinastia Gupta, cujos reinados constituíram uma espécie de idade de ouro na história da Índia, caracterizada por paz, prosperidade e grandes realizações nos campos da filosofia, ciências, artes e tecnologia.

O único tratado de Aryabhata que se preservou integralmente foi aquele que as gerações posteriores chamaram de Aryabhatiya. Trata-se de uma obra extremamente concisa que lida com uma grande variedade de assuntos. Concisão não foi característica rara na antiga literatura espiritual, filosófica ou científica indiana. Outro exemplo, para citarmos apenas um, são os Yoga Sutras, famoso tratado de yoga atribuído ao sábio Patânjali, escrito, supõe-se, no século IV d.C. Esses textos eram destinados, provavelmente, a um público já iniciado no assunto em pauta, e que dominava o repertório básico. Ou a estudantes que contavam com a assistência de professores qualificados, capazes de lhes explicar o sentido das frases ultracompactas.

Redigido em sânscrito, em 121 slokas (estrofes com dois versos), o Aryabhatiya abarca temas que vão das grandes divisões do tempo postuladas pelas tradições espirituais indianas ao movimento de rotação da Terra. Na parte matemática propriamente dita, envereda por disciplinas como aritmética, álgebra, trigonometria plana e trigonometria esférica.

 

Numeração posicional

Aryabhata adotou um sistema de numeração posicional, no qual o mesmo símbolo podia representar diferentes valores, de acordo com a posição que ocupava no número. Sua regra de numeração, resumida na frase “de lugar para lugar, cada um vale dez vezes o precedente”, é a mesma que adotamos atualmente. Ela nos permite, por exemplo, usar um único símbolo, o algarismo 2 (dois), para escrever o número 2222 (dois mil duzentos e vinte e dois). Pois, cada vez que o símbolo é deslocado uma casa para a esquerda, passa a valer 10 vezes mais: duas unidades na última casa, duas dezenas na penúltima, duas centenas na antepenúltima e dois milhares na primeira.

No entanto, Aryabhata não utilizou os 10 símbolos que constituem os chamados algarismos hindu-arábicos. Esse conjunto enxuto de signos – que é a base da numeração adotada atualmente no mundo todo – só foi introduzido um pouco mais tarde, pelo principal seguidor da escola de Aryabhata, Bhaskara I [2]. O próprio Aryabhata empregou um repertório simbólico bem mais complicado, atribuindo valores numéricos aos diferentes fonemas que compõem o idioma sânscrito. Utilizando 33 consoantes, cada qual com nove vocalizações, ele montou um estoque de 297 sílabas. E associou a cada sílaba um número específico. Colocando as sílabas em sequência, segundo o critério posicional, podia escrever qualquer número.

Tal solução, que aproximava as duas linguagens (a linguagem do idioma e a linguagem da matemática) por meio dos mesmos símbolos, foi uma bela realização do ponto de vista da síntese cultural. Não espanta que tenha alcançado sua forma acabada no Período Gupta. Mas, se era notável pela integração simbólica, certamente não constituía um recurso cômodo. Para manejá-lo era necessária uma considerável capacidade de memorização e abstração. É mesmo uma prova da genialidade de Aryabhata o fato de ele ter conseguido resolver problemas tão complexos valendo-se dessa forma de notação.

 

Grandezas precursoras dos senos

Uma de suas contribuições, que por si só o teria imortalizado, foi ensinar como construir uma tabela de grandezas que se tornariam precursoras dos senos, que utilizamos atualmente. Ele informou como montar essa tabela em apenas dois versos, com 12 palavras cada um!

Aryabhata não utilizou o conceito de seno. Assim como não utilizou o conceito de ângulo. Esses dois conceitos foram desenvolvidos e explicitados mais tarde. Mas já estavam de certa forma implícitos na relação que o matemático indiano estabeleceu entre os comprimentos dos arcos de uma circunferência e os valores de suas respectivas cordas. Vejamos como ele procedeu.

Tomando uma circunferência de raio conhecido, Aryabhata considerou o grande arco compreendido por um de seus quadrantes, que corresponde a um ângulo central de 90 graus. Dividiu esse grande arco ao meio, formando dois arcos menores, cada qual correspondente a um ângulo de 45 graus. Depois, dividiu esses dois arcos menores ao meio, formando quatro arcos menores ainda. E foi adiante com divisões pela metade, até seccionar todo o quadrante da circunferência em 24 pequenos arcos, cada qual correspondente a um ângulo central de 3 graus e 45 minutos.

Partindo do segmento mínimo [correspondente ao ângulo de 3º45’] e acrescentando sucessivamente a ele os segmentos subsequentes, Aryabhata construiu uma série de 24 arcos de tamanho crescente, que iam do pequeno arco de 3º45’ ao grande arco de 90º. Até este ponto, é provável que não tenha feito nada de novo. E que seu modo de dividir o quarto de circunferência e compor 24 arcos notáveis já fosse conhecido e utilizado pelos matemáticos indianos mais antigos.

A novidade – esta sim – foi Aryabhata ter informado como calcular o valor da corda de cada arco. Ou, dito de forma mais rigorosa, o valor de um segmento que corresponde à metade da corda gerada por um arco com o dobro do tamanho. Essa meia-corda era chamada de jya. E fica mais fácil de ser entendida por meio da ilustração a seguir, que é uma representação moderna dessa grandeza, e de outras a ela associadas.

 

Jya

 

Na imagem, o segmento S é o arco produzido na circunferência de raio R pelos pontos A e B. Estes, unidos ao centro O, formam o ângulo θ. O segmento verde BM, perpendicular à base, era chamado de jya. O segmento verde mais claro OM era chamado de koti-jya. E o segmento azul MA era chamado de utkrama-jya. Todas essas grandezas trigonométricas referiam-se ao arco S. Mas podem ser facilmente associadas ao ângulo θ. Os conceitos de jya e koti-jya são precursores dos conceitos modernos de seno e cosseno.

A relação exata entre esses conceitos indianos antigos e os conceitos trigonométricos modernos é a seguinte:

jya (arco S) = R. sen θ

koti-jya (arco S) = R. cos θ

utkrama-jya (arco S) = R (1 – cos θ )

A grandeza (1 – cos), antigamente chamada em português de “seno verso” [em inglês e francês, de versine; em espanhol, de verseno], caiu em desuso.

Quanto às 24 palavras que compõem os dois versos mencionados do Aryabhatiya, elas eram compostas por fonemas utilizados pelo matemático em seu sistema de numeração. A primeira informava o valor da jya do arco menor de todos, correspondente ao ângulo de 3º45’. E as palavras seguintes informavam os valores que deveriam ser somados a essa primeira jya para produzir as demais. A tabela deixa isso mais claro.

 

Ângulos correspondentes aos arcos definidos Sílabas correspondentes aos valores a serem somados Valores numéricos a serem somados Jyas Senos x Raio
03°   45′ makhi 225 225 224,8560
07°   30′ bhakhi 224 449 448,7490
11°   15′ phakhi 222 671 670,7205
15°   00′ dhakhi 219 890 889,8199
18°   45′ ṇakhi 215 1105 1105,1089
22°   30′ ñakhi 210 1315 1315,6656
26°   15′ ṅakhi 205 1520 1520,5885
30°   00′ hasjha 199 1719 1719,0000
33°   45′ skaki 191 1910 1910,0505
37°   30′ kiṣga 183 2093 2092,9218
41°   15′ śghaki 174 2267 2266,8309
45°   00′ kighva 164 2431 2431,0331
48°   45′ ghlaki 154 2585 2584,8253
52°   30′ kigra 143 2728 2727,5488
56°   15′ hakya 131 2859 2858,5925
60°   00′ dhaki 119 2978 2977,3953
63°   45′ kica 106 3084 3083,4485
67°   30′ sga 93 3177 3176,2978
71°   15′ jhaśa 79 3256 3255,5458
75°   00′ ṅva 65 3321 3320,8530
78°   45′ kla 51 3372 3371,9398
82°   30′ pta 37 3409 3408,5874
86°   15′ pha 22 3431 3430,6390
90°   00′ cha 7 3438 3438,0000

 

Comparemos as duas colunas da direita. A quarta coluna apresenta os valores das jyas calculados por Aryabhata. A quinta coluna, os números que podem ser obtidos atualmente, multiplicando-se o seno do respectivo ângulo pelo raio da circunferência. Os números que compõem as duas colunas são admiravelmente próximos, quando não os mesmos!

Faltou dizer que o valor atribuído por Aryabhata ao raio da circunferência não foi uma escolha arbitrária, mas um número que ele calculou com grande precisão.

O matemático partiu do fato de que a circunferência pode ser dividida em 360 graus. E cada grau em 60 minutos. Isso significa que a circunferência pode ser dividida em 360 X 60 minutos – vale dizer, em 21.600 minutos. Se o comprimento de um arco correspondente ao ângulo de 1 minuto for adotado como unidade de medida [vamos chamar essa unidade de u], o comprimento da circunferência toda [C] será igual a 21.600 u. Ora, Aryabhata sabia (e os gregos, antes dele, também sabiam) que o comprimento da circunferência é igual ao comprimento do raio multiplicado por duas vezes o valor de π (pi). Isto é, que C = 2 π R. Substituindo C por 21.600 u, e adotando para π o valor aproximado 3,1416 [uma excelente aproximação, com quatro casas decimais], o matemático indiano chegou ao valor do raio R, igual a 3.438 u.

Isso significa que, qualquer que seja o tamanho de uma circunferência, minúsculo ou gigantesco, o tamanho de seu raio será igual 3.438 vezes o comprimento do arco definido nessa circunferência por um ângulo de 1 minuto. O número 3.438, embora aproximado, pelo fato de o valor de π também ter sido aproximado, não foi, portanto, uma cifra arbitrária. E os números das duas últimas colunas da tabela, a que contém os valores das jyas e a que contém os valores dos produtos dos senos por 3.438, demonstram o quanto Aryabhata acertou no cálculo do raio da circunferência.

 

Rotação da Terra

Temos pouquíssimos dados seguros acerca da biografia de Aryabhata. Dois deles, justamente os mais firmes, são a data de nascimento (476 d.C.) e a data da redação do Aryabhatiya (499 d.C.). O próprio matemático comunicou esses dois números, com sólidas referências astronômicas. Deduz-se deles que Aryabhata escreveu seu tratado aos 23 anos de idade! Embora notável, esse dado não chega a ser surpreendente, pois sabemos que alguns dos maiores matemáticos alcançaram o ápice de suas capacidades na segunda ou terceira década de vida. Ou até mesmo antes. E a ideia de que a explosão do talento matemático ocorre predominantemente na juventude tornou-se mesmo tão difundida que, agora, um dos requisitos para a outorga da Medalha Fields, considerada uma espécie de Prêmio Nobel da matemática, é o de que o candidato não tenha mais de 40 anos de idade.

A precocidade não constituiria, portanto, um diferencial a ser considerado na avaliação da importância de Aryabhata. O único critério consistente é a qualidade intrínseca do próprio Aryabhatiya. Este foi tão valorizado em sua época e em épocas posteriores que, usando uma imagem poética, os comentadores chegaram a considerar Aryabhata uma encarnação do próprio Sol, o deus Surya, que teria descido à Terra para pôr fim às contradições entre as previsões dos tratados astronômicos e os dados decorrentes da observação do movimento real dos astros.

No campo da astronomia, uma das maiores contribuições de Aryabhata foi afirmar o movimento de rotação da Terra em torno de seu eixo. E explicar, em função desse movimento real, de oeste para leste, o movimento aparente das “estrelas fixas” em sentido contrário. Ele foi, inclusive, além, fornecendo um valor numérico para a velocidade angular da Terra: 1 minuto de arco por prana (4 segundos). Isso dá 0,25 minuto de arco por segundo – que é uma excelente aproximação, correta até a terceira casa decimal, do valor medido atualmente, com todos os recursos da tecnologia contemporânea.

Outras informações astronômicas notáveis veiculadas no Aryabhatiya foram as distâncias dos planetas visíveis ao Sol. Tomando a distância Terra-Sol como unidade de medida, portanto com valor 1, Aryabhata chegou aos seguintes resultados, comparados aqui com as medidas obtidas atualmente:

 

Planetas Medida calculada por Aryabhata Medida calculada atualmente
Terra 1,00 1,00
Mercúrio 0,38 0,39
Vênus 0,73 0,72
Marte 1,54 1,52
Júpiter 5,16 5,20
Saturno 9,41 9,55

 

Modelo geocêntrico

Talvez devido à excelência destes e de outros resultados, à excessiva concisão e linguagem antiga e obscura do Aryabhatiya, a uma tendência muito atual à superficialidade e ao exagero, e ao fato de que uma vez que alguém diga algo outros saem repetindo sem se dar ao trabalho de conferir, difundiu-se a ideia de que Aryabhata fez aquilo que não estava em condições de fazer. Primeiro: que adotou um modelo planetário heliocêntrico – colocando todos os planetas conhecidos, inclusive a Terra, em movimento ao redor do Sol. Segundo: que demonstrou que os movimentos planetários ocorriam segundo órbitas elípticas.

Se fosse verdadeira a segunda suposição, Aryabhata teria antecipado em mais de mil anos a descoberta das órbitas elípticas, realizada pelo grande astrônomo alemão Johannes Kepler (1571 – 1630). Para chegar a tal descoberta, Kepler utilizou os melhores dados astronômicos disponíveis em seu tempo, obtidos por Tycho Brahe (1546 – 1601). E despendeu muito tempo e um esforço titânico na interpretação da órbita de Marte, que parecia resistir a todas as suas tentativas de entendimento.

Quanto à primeira suposição, é verdade que o heliocentrismo já havia sido proposto, muito antes de Aryabhata, pelo astrônomo pitagórico Aristarco de Samos (cerca de 310 a.C. – cerca de 230 a.C.), que também foi, ao que se sabe, o primeiro a afirmar o movimento de rotação da Terra. Mas, segundo Arquimedes de Siracusa (cerca de 287 a.C – cerca de 212 a.C.), Aristarco apresentou o heliocentrismo apenas como hipótese, sem chegar a demonstrá-lo. Como o texto de Aristarco mencionado por Arquimedes não se preservou, ou ainda não foi encontrado, é impossível saber, no estágio atual, se ou o quanto o grande astrônomo pitagórico avançou na demonstração de seu sistema. Um seguidor de Aristarco, Seleuco de Selêucia (nascido por volta de 190 a. C.), teria, ele sim, demonstrado o modelo heliocêntrico. Mas não se sabe como, pois seu texto também se perdeu. De qualquer forma, a maioria dos matemáticos e astrônomos que atuaram no ambiente cultural grego rejeitou o heliocentrismo em favor do geocentrismo.

Utilizando ótimos dados astronômicos registrados pelos babilônios, Hiparco de Nicéia (cerca de 190 a.C. – cerca de 120 a.C.) elaborou um modelo geocêntrico, mais tarde revisado e sofisticado, em Alexandria, por Cláudio Ptolomeu (cerca de 100 d.C. – cerca de 170 d.C.). Baseados na ideia platônica da perfeição do movimento circular uniforme e na ideia aristotélica da centralidade da posição da Terra, os modelos de Hiparco e Ptolomeu tiveram que se valer de artifícios matemáticos para conciliar tais pressupostos com o movimento real dos planetas. Pois estes orbitam o Sol e não a Terra, e se deslocavam em trajetórias elípticas e não circulares. O recurso que utilizaram – e que já havia sido antecipado por Apolônio de Perga – foi compor movimentos hipotéticos para mimetizar os movimentos verdadeiros. Ou melhor, para acomodar os dados observados.

O procedimento mais simples adotado com esse objetivo foi conjugar duas órbitas circulares, chamadas respectivamente de “deferente” e “epiciclo”, para obter posições próximas às posições reais observadas pelos astrônomos. O deferente é a trajetória descrita por um ponto hipotético que se desloca em movimento circular uniforme ao redor da Terra. O epiciclo é a trajetória supostamente descrita por um planeta que se desloca em movimento circular uniforme ao redor desse ponto hipotético. A figura ajuda a entender.

 

EPICICLO

 

Esses movimentos combinados foram propostos para acomodar a observação empírica de que os planetas ora se aproximavam ora se afastavam da Terra em diferentes pontos de suas trajetórias. E ora se moviam em um sentido, ora pareciam parar e ora se moviam em sentido contrário, antes de retomarem o deslocamento normal. Mas um recurso tão simples não deu conta de todas as discrepâncias observadas. E Ptolomeu precisou complicar muito o modelo, aplicando epiciclos sobre epiciclos, e recorrendo a outros artifícios inteligentes.

Não é nossa intenção discorrer aqui sobre todas as complexidades do modelo ptolomaico. Os interessados poderão encontrar, facilmente, boas apresentações, procurando na internet. Basta dizer que, embora artificial, ele dava conta, de maneira admirável, dos dados observados, e permitia fazer previsões acuradas sobre as efemérides astronômicas.

Escrito em grego, por volta de 150 d.C., com o título de Mathēmatikē Syntaxis, o grande tratado de Ptolomeu foi traduzido para o árabe no século IX d.C., pelo célebre médico sírio Ḥunayn ibn Isḥaq, que foi o coordenador do corpo de tradutores da Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikmah), fundada em Bagdá pelo califa Al-Mamum (cujo reinado se estendeu de 813 d.C. a 833 d.C.). Esse tratado, lido e estudado com extremo interesse e respeito pelos sábios muçulmanos, passou a ser chamado por eles de Al-majisṭī (O Máximo), título do qual deriva a denominação Almagesto, utilizada em português. Do árabe, o tratado de Ptolomeu foi traduzido para o latim por Gerardo de Cremona, no século XII. Assim, seja por meio do original grego, seja por meio de suas traduções, o Almagesto exerceu, no Ocidente, uma influência avassaladora, que se prolongou por quase um milênio e meio.

Sua influência chegou também ao Oriente, pois, antes do surgimento do Islã, mais especificamente no século III d.C., ele já havia sido, parcial ou totalmente, traduzido na Pérsia [3]. Os contatos entre as culturas grega e indiana são muito antigos e intensos intercâmbios culturais ocorreram entre os dois ambientes. No entanto, não dispomos de elementos que nos permitam saber se a adoção de um modelo geocêntrico baseado em deferentes e epiciclos ocorreu na Índia por influência grega ou se foi uma realização independente [4]. Seja por um caminho ou por outro, a astronomia indiana já utilizava esse sistema antes de Aryabhata, que o adotou e aperfeiçoou.

Que Aryabhata tenha utilizado um modelo geocêntrico e não heliocêntrico, isso foi enfaticamente demonstrado pelo físico, astrônomo e historiador da ciência Shaikh Mohammad Razaullah Ansari, da Aligarh Muslim University (Aligarh, Uttar Pradesh, Índia), que apresentou também uma tabela comparando os períodos de revolução do Sol, da Lua e dos cinco planetas visíveis (Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno), calculados por Ptolomeu, por Aryabhata e pela moderna astronomia. Os números obtidos pelos dois matemáticos antigos, com base em sistemas artificiais, podem ser considerados excelentes [5].

A construção do conhecimento é um empreendimento coletivo. Por mais que a contribuição de um gênio isolado possa estar à frente de sua época, ainda assim ela é fruto dessa época. Isaac Newton (1643 – 1727), que foi talvez o mais genial dos cientistas, afirmou que, se enxergara longe, foi por ter subido nos ombros de gigantes. Ele se referia a toda uma geração anterior, que incluía nomes como os de Galileu Galilei, Johannes Kepler, René Descartes, Pierre Gassendi, Robert Boyle e Henry More, entre outros. No caso de Aryabhata, para termos uma avaliação justa de sua importância, seria preciso considerar o que ele herdou dos matemáticos que o precederam. E também o que matemáticos de sua terra ou de outras terras estavam fazendo mais ou menos na mesma época. Que eu saiba, esse é um trabalho intelectual que ainda não foi completado. Mas já começou a ser feito.

 

Notas

[1] Minha intenção original era publicar aqui a terceira e última parte de um capítulo de popularização da história da matemática antiga, que escrevi em 2011. Com isso, eu completaria a pequena série iniciada nas duas postagens anteriores. Porém, quando reli o material a ser publicado, que cobria de forma muito resumida as principais realizações dos antigos matemáticos indianos, muçulmanos e chineses, percebi que aquilo que tinha em mãos era muito insuficiente e não estava à altura das duas partes já postadas. Abandonei, então, esse texto. E escrevi um artigo inteiramente novo, concentrando-me no grande matemático indiano Aryabhata. Com ele, eu encerro a série, esperando poder escrever, mais adiante, algo que mereça ser publicado sobre a ciência islâmica, que é, para mim, um grande objeto de admiração.

[2] Esse Bháskara, que viveu no século VII d.C., e parece ter sido o primeiro a escrever os números com os dez algarismos (inclusive o zero), posteriormente adaptados pelos árabes e transmitidos ao Ocidente, não deve ser confundido com o outro Bháskara, que viveu no século XII d.C., e foi o autor da famosa fórmula que permite calcular o valor da incógnita nas equações do segundo grau. Para diferenciar um do outro, o mais antigo foi chamado, pela posteridade, de Bháskara I, e o mais recente, de Bháskara II.

[3] Segundo informou o arabista alemão Paul Kunitzsch, uma primeira tradução, parcial ou integral, do Almagesto foi feita na Pérsia durante o reinado de Shahpur I, entre 241 d.C. e 272 d.C. Um segundo período de intenso contato entre as culturas persa e grega deu-se em meados do século VI d.C., depois que vários sábios gregos imigram para a Pérsia em decorrência do fechamento da Academia de Atenas, em 529 d.C, por ordem do imperador cristão Justiniano I. O texto de Kunitzsch, “Almagest: Its Reception and Transmission in the Islamic World”, faz parte da Encyclopaedia of the History of Science, Technology, and Medicine in Non-Western Cultures.

[4] T.S. Kuppanashastri, em “The main characteristics of Hindu astronomy in the period corresponding to pre-Copernican European astronomy”, considera mais provável que os modelos baseados em epiciclos tenham surgido na Índia de forma independente. E apresenta argumentos para isso. Seu texto pode ser acessado em:

http://sandhi.hss.iitb.ac.in/Sandhi/Mathematics%20and%20Astronomy%20articles/Shastri%20TSK/Shastri%20%20-%20The%20Main%20Characteristics%20of%20Hindu%20astronomy%20in%20pre-copernican%20period.pdf

[5] A tabela e os argumentos de Ansari, apresentados em seu excelente artigo “Aryabhata I, his life and his contributions”, podem ser acessados em http://articles.adsabs.harvard.edu//full/1977BASI….5…10A/0000012.000.html