A melhor hora

Nascer do Sol 2

Primeiros clarões do Sol na Chapada Diamantina. Foto: JTA

Uma das muitas virtudes do Profeta Muhammad (Sallallahu Alayhi Wa Sallam) era a de se expressar por meio de tríades. E isso é virtuoso porque o Um se desdobra em Três, o que confere à Realidade Unitária um arcabouço matemático triádico. O assunto é complicado demais para que eu me atreva a desenvolvê-lo aqui. Mas tudo isto foi para introduzir um famoso Hadith (sentença atribuída ao Profeta) que diz: “São três os adornos do corpo: comer pouco, dormir pouco, falar pouco. São três os adornos do coração: paciência, silêncio, gratidão”.

Quando postei recentemente essa frase, alguns amigos fizeram comentários do tipo: “Tudo bem, exceto dormir pouco”. É curioso que, em nossa época, avassalada pela indústria alimentícia e pelas mídias sociais, seja tranquilo “comer pouco” e “falar pouco”, mas que “dormir pouco” constitua um problema.

Quem tiver a oportunidade de ler a excelente biografia Muhammad, a vida do Profeta do Islam segundo as fontes mais antigas, escrita por Martin Lings e publicada no Brasil por Attar Editorial, vai descobrir que “dormir pouco” era um hábito que Muhammad realmente cultivava. E que algumas de suas mais importantes experiências espirituais ocorreram exatamente durante a vigília noturna. Acima de todas, o sublime Mi’rāj [1].

A conveniência da vigília noturna é ressaltada por esta outra frase que compus reunindo dois fragmentos da Sura 73 do Corão: “Ó tu, que te cobres com um manto! Levanta-te à noite e fica em vigília (…) E invoca o Nome de teu Senhor em recordação, e consagra-te inteiramente a Ele com devoção”.

O hábito de dedicar parte da noite para a contemplação foi compartilhado por muitos caminhantes da senda espiritual, entre eles, sufis muçulmanos, místicos cristãos, cabalistas judeus e iogues indianos. Lembremos que um dos epítetos do xamã é “aquele que enxerga no escuro”.

Na alta espiritualidade indiana, na qual muito do que permanece implícito em outras tradições se explicita com bastante clareza, o período considerado ideal para a meditação, a recitação de mantras e outras práticas é chamado de Brahma Muhurta (Hora de Brahma). Ele se estende por um intervalo de 96 minutos antes da aurora até o nascer do Sol propriamente dito. Se, no local e na data, o Sol ascender no horizonte às 6h00, o Brahma Muhurta terá início às 4h24.

Segundo o Ayurveda, toda a pessoa, seja qual for seu tipo, experimenta uma rotação dos três doshas durante as 24 horas do dia. No período compreendido entre 2:00 e 6:00, o dosha Vata predomina, o que torna o indivíduo menos agarrado ao mundo material. Ademais, é o período em que a maioria das pessoas dorme – o que alivia o peso acachapante daquilo que Sri Aurobindo chamou de “consciência envolvente”. Nessa hora e meia, as barreiras entre os mundos encontram-se afrouxadas, e é mais fácil acessar os estados superiores de consciência.

É interessante observar como Muhammad insiste neste ponto em outra sentença. Trata-se de uma frase do famoso discurso que proferiu ao chegar pela primeira vez a Medina: “Ó gente! Dirigi, uns aos outros, saudações de paz; dai de comer aos famintos; honrai os vínculos de parentesco; orai durante as horas em que os homens dormem. Assim, entrareis em paz no Paraíso”[2].

No livro The Voice of Babaji, o grande discípulo V.T.Nilakantan recomenda ao leitor que, ao se aproximar o início do Brahma Muhurta, não perca tempo demais ao escovar os dentes. E se dirija logo para sua almofada de meditação.

Boa noite!

Notas

[1] Sobre o Mi’rāj, leia o artigo “Muhammad, o Profeta do Islã”, postado neste Blog:

Muhammad, o Profeta do Islã

[2] Idem