Um vislumbre da sabedoria andina

Dom Manuel Q'espi

Dom Manuel Q’espi, fotografado em 1996, ao lado do Rio Negro, em Manaus. Foto de Franklin Hudson da Silva Fonseca, digitalizada por Daniel Antonio de Oliveira. 

*

Em 1996, realizou-se em Manaus a 13a Conferência da International Transpersonal Association (ITA). Eu participava do movimento transpessoal e compareci ao encontro. Como jornalista, pensei em aproveitar a oportunidade para entrevistar algumas das pessoas notáveis que estariam presentes. De fato, colhi vários depoimentos: do psiquiatra tcheco Stanislav Grof (1931), principal formulador da Psicologia Transpessoal, e de Christina Grof (1941 – 2014), sua esposa e coautora do método da Respiração Holotrópica; de Michael Harner (1929 – 2018), então presidente da Seção de Antropologia da Academia de Ciências de Nova York e considerado uma autoridade mundial em Xamanismo; do físico indiano Amit Goswami, ex-professor da Universidade de Oregon, que, se não me engano, estava vindo ao Brasil pela primeira vez (depois, ele passaria a vir com frequência).

Mas a grande entrevista que eu queria fazer era com Dom Manuel Q’espi, o Kuraq Akulleq do povo Q’ero, nos Andes peruanos. Pesquisei pelo significado de Kuraq Akulleq e o melhor que encontrei foi que essa expressão, em língua quéchua, pode ser traduzida como “o velho que masca folhas de coca” ou “o sábio que sabe muitas coisas”. Essas definições, tão amplas e vagas, englobariam as funções de curandeiro e sacerdote. Dom Manuel havia alcançado o quarto nível, que era, na época, o mais elevado da hierarquia espiritual andina.

Ele foi o primeiro e até hoje o único “pele vermelha” que eu conheci. Todos os outros indígenas que tive a oportunidade de encontrar, no Brasil ou no exterior, tinham a pele morena, mais escura ou mais clara, dependendo do povo a que pertenciam. Mas Dom Manuel era realmente de cor avermelhada. Morava em um pequeno povoado, com cerca de 400 habitantes, sem eletricidade nem água corrente, situado a mais de 4500 metros de altitude. Ele já morreu –não consegui descobrir quando. Porém, na época, estava ainda bastante vigoroso, com 72 anos de idade. Era o líder espiritual do povo Q’ero, o mais tradicional do Peru, e um mestre da Hatun Karpay, a “Grande Iniciação”.

Apesar de baixo, sua presença impressionava. No interior absurdamente refrigerado do Hotel Tropical, onde se realizava a conferência da ITA, ele usava roupas rústicas de lã de lhama ou alpaca, que recendiam fortemente a fumaça. No exterior asfixiante de Manaus, com roupas comuns, tornava-se menos imponente, e até um pouco mais jovem. Mas, dentro ou fora, parecia perfeitamente colocado em si mesmo, como uma pedra polida pela ação do tempo.

Só se comunicava na língua quéchua. Por isso, para poder entrevistá-lo, eu precisava de um intérprete. E a boa sorte ofereceu-me um com as mais altas credenciais: Dom Juan Nuñez del Prado, respeitado professor de antropologia da Universidade de Cusco que, contra todas as suas expectativas, se tornou também profundo conhecedor e alto sacerdote da tradição andina. Dom Manuel responderia às minhas perguntas em quéchua e Dom Juan traduziria suas falas para mim em espanhol.

O arranjo era perfeito. Mas, na primeira pergunta, a entrevista desmoronou. Olhando-me bem nos olhos, Dom Manuel interrogou por que lhe perguntava coisas cujas respostas eu já conhecia. Aparentemente, não lhe passava pela cabeça que o jornalista muitas vezes precisa se fazer de desentendido em benefício dos seus leitores. Para ele, a palavra era, realmente, coisa séria. Ao me dar a entrevista, estava falando comigo, de alma para alma, e não para uma publicação impessoal e abstrata.

Diante disso, o que mais eu poderia fazer? Percebendo o meu embaraço, Dom Juan me fez um sinal e disse que ele mesmo responderia às perguntas mais tarde. Depois que Dom Manuel se retirou, concedeu-me um extraordinário depoimento. Apesar da enorme diferença de trajetórias, Dom Juan e eu tínhamos algo em comum: éramos dois intelectuais para os quais a palavra constituía, por assim dizer, moeda de troca. Mas Dom Manuel provinha de outro mundo: um mundo no qual a palavra ainda conservava o misterioso poder instaurador que possuía nos tempos ancestrais.

Conservei durante anos o depoimento de Dom Juan, sem conseguir publicá-lo, até que finalmente o postei no blog. Quanto a Dom Manuel, sua primeira fala foi tão desconcertante que eu fiquei com a impressão de que ele não havia dito mais nada. E isso se cristalizou em minha memória. Porém, recentemente, descobri que as coisas não haviam ocorrido bem assim. Tentando colocar em ordem meu arquivo pessoal, reencontrei um conjunto de cadernos, nos quais eu costumava registrar minhas entrevistas. São relíquias de uma época em que eu desconfiava dos gravadores e conseguia escrever muito depressa – duas características que mudaram depois.

Abrindo um desses cadernos, descobri que, apesar de não ter feito a entrevista que pretendia, consegui arrancar duas frases curtas de Dom Manuel Q’espi. Embora lacônicas, elas são bastante interessantes. Eu as publico aqui pela primeira vez. E, na sequência, republico o depoimento de Dom Juan Nuñez del Prado.

*

O depoimento de Dom Manuel Q’espi

Cinquenta anos atrás, quando estava muito doente, fui levado a um curandeiro. E, durante o tratamento, tive uma grande visão de Jesus Cristo. Em uma segunda visão, Cristo me disse que eu seria curandeiro e sacerdote. Tenho o poder de falar com os espíritos dos rios, das árvores.

O Espírito Santo pode lhe ensinar tudo o que você precisa. Eu falo frequentemente com o Espírito Santo e ele me ensina tudo. Se você falar com o Espírito Santo, vai ser feliz e ter tudo o que precisa na vida. Isso é tudo o que eu sei. Eu sei a sabedoria.

*

O depoimento de Dom Juan Nuñez del Prado

Em 1955, meu pai, um antropólogo, fez uma expedição, na qual encontrou índios muito puros, isolados nas montanhas, com uma incrível memória do caminho do inca. Mantinham, por exemplo, dois importantes mitos, que preservavam exatamente as mesmas características narradas pelos cronistas espanhóis: um sobre a fundação do império inca; outro sobre a volta do inca. Quando meu pai fez essa descoberta, isso foi uma grande novidade em antropologia. Mas, depois, ele encontrou os mesmos mitos em várias áreas do Peru.

Em 1968, eu estava estudando antropologia e fazia uma pesquisa sobre a estrutura social indígena. Um mês depois de iniciar o trabalho de campo, me dei conta de algo importante: tudo o que eu estudava tinha, em última instância, uma explicação sobrenatural. Pedi então autorização para mudar o eixo de minha pesquisa, do social para o espiritual. Naquele tempo, todos acreditavam que, no Peru, éramos uma maioria de católicos romanos. Em particular, a Igreja acreditava nisso. Quando publiquei meu trabalho, mostrei que, embora o catolicismo tivesse sido introduzido, havia, na religião popular, muitos aspectos não europeus, que pertenciam a culturas bem mais antigas.

A Igreja começou um processo de investigação para provar que tudo o que eu dizia era falso. Mas o projeto foi conduzido por sacerdotes honestos, que confirmaram minhas investigações e me convidaram a publicá-las em sua própria revista. Mesmo eu, porém, pensava que isso só valia para uma pequena área do país. Em 1969, fiz um trabalho de grande alcance e descobri que esse sistema de crença estava espalhado por uma grande área. Em 1975, verifiquei que ele abarcava o Equador, o Peru, a Bolívia, o norte do Chile e o norte da Argentina.

Fiz uma hipótese acadêmica de que deveriam existir certos especialistas, que mantinham essas tradições vivas. Com patrocínio da Fundação Ford, comecei uma pesquisa para encontrá-los. E descobri, para minha surpresa, que, na cidade em que eu vivia, havia 70 sacerdotes andinos, mais do que o total de sacerdotes católicos e protestantes juntos. Ademais, havia toda uma hierarquia de quatro graus, com seus sistemas de iniciação. Obviamente, eu queria conhecer os mais altos representantes da hierarquia. Encontrei apenas dois: Dom Oscar Velazques e Dom Benito Corioman.

Fui à casa de Dom Benito com um tradutor, e encontrei um homem baixinho, gordinho, com olhos expressivos. Nos convidou a sentar e compartilhar os presentes que havíamos levado: coca e aguardente. No segundo copo, já não precisávamos de tradutor. No terceiro, Dom Benito começou a falar numa língua muito estranha. O curioso é que, quando ele falava, eu podia ‘ver’ o que ele estava falando. Mais curioso ainda é que, quando eu falava com ele, usava a mesma língua. Para nós aquilo parecia perfeitamente normal. Quando terminou a entrevista, descobri que o tradutor não havia entendido nada e estava completamente bêbado com três copinhos de aguardente. Depois de três meses de muita confusão, deixei de ser um pesquisador para me tornar um aluno de Dom Benito.

Avancei rápido na carreira. Em menos de dois anos, cheguei ao terceiro nível na hierarquia sacerdotal. Mas precisei de mais 10 anos para chegar ao quarto. Finalmente recebi a Hatun Karpay (Grande Iniciação). Dom Benito me mandou então a vários outros mestres, inclusive Dom Manuel Q’espi. Em 1989, Dom Manuel também me deu sua Hatun Karpay — diferente da de Dom Benito. Era um outro estilo, dentro de uma grande tradição.

Os quatro níveis de iniciação parecem corresponder aos quatro níveis básicos de consciência que podem ser alcançados pelo ser humano. Mas existe a expectativa de que se possa atingir três níveis mais. Na minha opinião, há nisso todo um projeto de evolução da consciência humana. É um caminho místico, de caráter sempre coletivo. E está relacionado com a expectativa messiânica do retorno do inca.

Se analisarmos a estrutura dos sete graus, o ‘retorno do inca’ corresponde à aquisição do mais elevado grau de consciência. Essa expectativa está relacionada a eventos religiosos importantes. E existem grandes santuários no Peru que dão bases muito sólidas, com enorme mobilização de energia coletiva, para a realização da profecia, para a conquista de um grau de iniciação correspondente a uma nova era. Estou convencido de que, num momento ou outro, esse nível irá emergir.

Outro aspecto importante é que se trata de um messianismo de casais. Deverão emergir, primeiro, seis casais com novo nível de consciência. Esse coletivo servirá de base para a emergência de um casal que terá nível de consciência superior. Tecnicamente, o que se está fazendo nos Andes não é esperar, mas preparar o retorno do inca. Não estamos nos preparando individualmente, mas criando as condições para que a emergência ocorra.

Tudo isso está associado a um conceito de energia viva, Kausai Pacha, que é o mais amplo conceito cósmico concebido pelos andinos. A energia viva é só energia viva – sem distinção de positiva ou negativa, boa ou má. Só distinguimos a energia superior (refinada), a energia média (mista) e a energia inferior (pesada). A energia pesada pode ser uma porta para o caminho. O praticante deve aprender a se relacionar com todas as energias viventes e – o mais importante – aprender a digerir a energia pesada.

Em algumas tradições, há uma grande ênfase na proteção do campo energético do praticante. E isso acaba se transformando numa espécie de cárcere. A ideia de que não existe energia negativa, mas que todas as energias podem ser digeridas, abre um grande campo. No meu caso, eu tinha uma relação muito negativa com uma pessoa. Quando Dom Benito me ensinou essa técnica, eu comecei a aplicá-la nessa relação. Um ano e meio depois, ocorreu uma coisa impressionante: eu entrava no meu departamento, enquanto ele saia. Automaticamente, ele me disse: ‘Bom dia’. Três passos depois, ele estava arrependido. Mas eu aproveitei para também dizer ‘bom dia’. E a relação de inimizade se transformou numa sincera relação de amizade. Essa questão é de extrema utilidade, pois as más relações humanas são, afinal, a origem de tudo o que há de mau no mundo.

A tradição inca reconhece a existência de centros de energia semelhantes aos chakra das tradições orientais. Os andinos os chamam de nawi (olho) e os relacionam com uma série de faixas que estruturam o campo de energia do ser humano, denominadas chumpi. São eles:

  1. Siki Nawi, na base da coluna, associado a uma faixa de energia semelhante a um calção negro;
  2. Qozqo Nawi, no umbigo, associado a um cinturão vermelho;
  3. Surgo Nawi, no coração, associado a um cinturão dourado;
  4. Kunka Nawi, na garganta, associado a um cinturão prateado;
  5. Kulli Nawi, no meio das sobrancelhas, de cor violeta e não associado a nenhuma faixa.

Chumpi Pago é o sacerdote especialista em criar ou abrir os cinturões de energia.

Os indianos meditam sobre os chakra para mover as rodas. No caso andino, o trabalho do praticante consiste em fazer os nawi ‘comerem’ diferentes tipos de energia. Cada um deles ‘come’ um tipo específico. É o Qozqo Nawi que digere a energia pesada. Assim como nosso estômago físico digere os alimentos, sem que precisemos ensiná-lo, também nosso estômago espiritual ‘sabe’ como ‘digerir’ a energia pesada. Tudo o que precisamos fazer é focalizar a atenção sobre ele, para ‘despertá-lo’ para sua tarefa.

Também a Terra possui centros de energia. O nome da cidade de Cusco vem de qozco, porque lá se localiza o “estômago espiritual” da Terra. Os incas sabiam disso.

A tradição andina é bem mais sofisticada do que o xamanismo. Ela está associada a uma profecia, a um sistema de crenças e a uma visão de mundo, resultantes de um lento processo de elaboração no contexto de uma civilização avançada. Isso também vale para a tradição guarani. Embora tenha assimilado muito bem a figura de Cristo, ela conserva, depois de 500 anos de colonização, uma grande quantidade de elementos que não são europeus.

Nossa intenção ao expor a tradição é preserva-la. Pois a melhor maneira de se conservar alguma coisa é difundi-la. Mas existe algo mais.

Dom Manuel se considera um inca e, ao que parece, a Amazônia era a fronteira extrema do Império Inca. Há alguns anos, foi encontrada uma tumba real inca em Manaus. E sabemos que os guaranis tinham um contato muito estreito com os incas (o primeiro espanhol a chegar ao Peru era um aventureiro que aportou no Uruguai; foram os guarani que o levaram até o Lago Titicaca).

Então viemos a Manaus para fazer uma prática. Há linhas de energia que conectam uma pessoa a outra ou um lugar a outro. O nome andino para essas linhas é seqe. Estamos fazendo uma série de conexões. Conectamos o santuário de Cuzco com La Paz; La Paz com Santa Cruz; e Santa Cruz com Manaus. Logo que chegamos fizemos um ‘despacho’ no Rio Negro.

Essas conexões têm a função de criar harmonia entre os lugares. Estamos querendo conectar a ‘bolha’ ou campo energético do Peru, com a da Bolívia e do Brasil. Isso tudo está associado com o ‘regresso do inca’. Não é só a aquisição de um novo patamar de energia, mas também uma grande unificação espiritual da América Latina.

Em 1º de agosto de 1990, começou o trânsito de uma era a outra. Tal passagem durou até 1º de agosto de 1993. Nessa data, iniciou-se a nova era. Ela deverá se manifestar de maneira explícita em 2012. Não é por acaso que o calendário maia termina em 2012.

*

Dom Manuel e Dom Juan

Dom Manuel Q’espi e Dom Juan Nuñez del Prado, em 1996. Ao fundo, o majestoso Rio Negro na primeira luz do crepúsculo. Foto de Franklin Hudson da Silva Fonseca, digitalizada por Daniel Antonio de Oliveira. 

*