O interprete dos desejos ardentes: um poema de Ibn Árabi

Nizam

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Seus prados de primavera

Estão desolados agora.

Mas o desejo que inspiram

Vive em mim — para sempre.

*

Estas lágrimas são derramadas

Sobre as ruínas de suas moradas,

Em memória de outras tantas,

De minha alma liquefeita.

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Por amor a ela, eu grito,

No rastro de seus camelos:

Ó tu, que és rica em beleza,

Eis-me aqui, o mendigo.

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Entreguei meu rosto ao pó,

Em afeição apaixonada.

Pelo amor de minha entrega,

Não me retires a esperança.

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Aquele que em lágrimas

Se afoga e no fogo da tristeza

Queima: quem poderá,

Neste instante, redimi-lo?

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Queres o fogo? Toma-o.

Sente esta paixão ardente.

E talvez em suas chamas

Também tu te incendeies.

*

Nota

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Tarjuman al-ashwaq (“O interprete dos desejos ardentes”) foi escrito por Ibn Árabi na cidade de Meca, nos meses lunares de rajab, sha’bân, e ramaḍân do ano 611 do calendário muçulmano – que correspondem à transição de 1214 para 1215, no calendário gregoriano. O grande místico andaluz, que os sufis denominam ash-shaykh al-akbar, “o maior dos mestres”, e que que viveu entre 1165 e 1240, tinha então 49 anos. Estava no auge da maturidade, tendo já obtido suas principais aquisições espirituais.

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A tradição atribuiu a Ibn Árabi cerca de 800 livros. Destes, mais de cem se preservaram e foram devidamente autenticados pelos estudiosos, com todos os recursos do aparato crítico contemporâneo. Seu opus magno, Al-futûhât al-makkiyya (“Os desvelamentos de Meca”) contém, na edição moderna em árabe, cerca de 15 mil páginas. Menos de dez por cento desse conteúdo gigantesco foi, até o momento, traduzido em línguas ocidentais. Outro tratado importante, de dimensão incomparavelmente menor, foi, este sim, traduzido e exaustivamente comentado. Refiro-me a Fusûs al-hikam (“Engastes das sabedorias”).

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Ao lado dessas duas obras monumentais, “O interprete dos desejos ardentes” compõe a tríade dos livros mais famosos de Ibn Árabi. Diferentemente dos outros dois, porém, escritos em prosa ultradensa, impregnados de citações do Corão e dos Hadith (os ditos atribuídos ao profeta Muhammad), e redigidos com o uso abundante da terminologia técnica do tasawwuf (sufismo), o “Interprete” consiste em um conjunto de poemas, de aparência erótica, mas cuja natureza mais profunda, como o próprio autor ressaltou, é de substância espiritual.

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Assim como ocorreu com “Os desvelamentos de Meca”, também a inspiração para “O interprete dos desejos ardentes” veio a Ibn Árabi em sua primeira peregrinação à cidade santa do Islã, no ano 598 do calendário muçulmano (1202 do calendário gregoriano). Mas, se a fonte imediata da inspiração no caso dos “Desvelamentos” foi uma experiência espiritual, talvez a mais esotérica das inúmeras experiências esotéricas vividas pelo grande místico [1], o fator que motivou a composição dos poemas do “Intérprete” foi um encontro humano – intensamente humano.

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No início da noite, em estado de êxtase, Ibn Árabi realizava, mais uma vez, a circum-ambulação ritual da Caaba, enquanto recitava em voz alta versos que ia compondo no momento. Sentiu, então, um toque suavíssimo em suas costas. Virou-se e viu uma jovem de excepcional beleza, que o inquiriu: “Ó mestre, o que acabas de dizer?”. Ele repetiu os versos, um a um. E, um a um, ela os interpretou. Encantado com sua aparência, inteligência e sutileza, Ibn Árabi perguntou-lhe o nome. “Nizam (Harmonia)”, ela respondeu.

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Filha de um eminente shaykh persa, Nizam Ayn ash-Shams wa al-Baha (Harmonia, Olho do Sol e da Beleza) participava de uma requintada elite intelectual e espiritual, liderada por seu pai. Ibn Árabi frequentou esse grupo durante sua primeira estadia em Meca. E, depois, o viu partir.

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Referindo-se Nizam, escreveu: “Sempre que olha, ela atira espadas incisivas, e seu sorriso é um relâmpago deslumbrante”. Mas, ao contrário do que afirmaram algumas biografias romanceadas do grande mestre, os dois jamais se casaram. E, provavelmente, não tiveram outro contato físico além do sutilíssimo toque nas costas com o qual ela pediu a atenção dele durante a circum-ambulação da Caaba.

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Depois de viver um longo período de completo celibato, Ibn Árabi teve duas ou três esposas e filhos. Embora existam informações detalhadas sobre seus numerosos mestres, companheiros e discípulos, quase nada se sabe acerca dessas esposas. Mas, com certeza, Nizam não foi uma delas. Como afirmou Henry Corbin, a jovem persa foi para o místico andaluz o mesmo que Beatriz foi para Dante: a expressão  de um ideal sublime.

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Para permanecer sublime, esse ideal não pode se efetivar. Bem concreta em sua corporeidade, Nizam precisou ser subtraída da mera empiria, para se tornar, por excelência, um locus epifânico. Como dois astros cujas trajetórias se cruzam uma vez a cada século, Ibn Árabi e Nizam se encontraram, se iluminaram reciprocamente, e depois partiram, talvez sabendo que não voltariam a se rever nesta vida.

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O poema recriado acima refere-se à dor de uma ausência. Começa evocando a memória de Nizam na terceira pessoa. Depois, passa a dialogar com ela na segunda, como se a própria evocação poética a tivesse reaproximado. Trata-se do oitavo poema do Tarjuman al-ashwaq.

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Para recriá-lo em português, comparei dois textos em inglês: a célebre tradução do orientalista britânico Reynold Nicholson, de 1911, cuja versão integral do livro, com prefácio, introdução e notas, pode ser acessada em http://sacred-texts.com/isl/taa/index.htm . E uma tradução mais recente, de Michael Sells, publicada no jornal da Muhyiddin Ibn ‘Arabi Society, em 1995, e reproduzida no site dessa entidade, em http://www.ibnarabisociety.org/articles/sellstarjuman.htmlDepois de postar uma primeira versão, não gostei do resultado. E o retoquei várias vezes, até chegar à forma atual.

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[1] Ibn Árabi disse que tudo o que escreveu nos 560 capítulos de Al-futûhât al-makkiyya lhe foi desvelado em uma única experiência espiritual, cuja duração na escala do tempo ordinário não deve ter excedido alguns minutos. Esse episódio, um dos mais insólitos do vasto repertório da mística, foi detalhadamente descrito por Claude Addas no livro Ibn ‘Arabi ou La quête du Soufre Rouge. Mas não me atrevo a reproduzi-lo agora. Talvez em outra ocasião.