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“Awake! Awake! O sleeper of the land of shadows” (William Blake)
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Fazer-me outra vez Adão,
Emergir da lama do autoesquecimento,
Escapar do monstruoso relógio,
Em que somos um nada entre nadas,
Descartável rubi no hipertrofiado mecanismo.
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E então, na cambiante luz da madrugada,
Com silêncio de pássaros e aragem de pinheiros,
Relembrar que afinal sou sempre Borges
E também um calígrafo persa,
Que adotou a profissão de buscador
E penetrou no labirinto cretense
E escalou a torre de Babel
E tocou com as mãos a estrela fria,
Para cair como um cão atropelado
Na avenida que já não respeita os mortos.
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E então, ainda então,
Topar outra vez comigo mesmo,
Esfarrapado aprendiz que volta à casa,
Esquálido iogue, o corpo coberto de cinzas,
Bêbado Li Tai Po, que mergulhou no lago frio
Para beijar os lábios fugidios da lua.
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E sentir girar de novo a plataforma móvel,
Grande ninho, mãe, planeta,
Com sua invisível linhagem,
Venerável sucessão, corrente de ouro,
Teia de tempo tecida no sem-tempo.
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E então, finalmente então,
Evadir-me da rede em que nos debatemos, peixes,
E, atendendo ao inaudível chamado da musa,
Beber o perfume da flor que não se vê,
Reiniciar o passo que não se sabe onde,
Buscar a pedra que não se sabe quando,
E deixar em um canto, junto à roupa suja,
O dormente, o sonâmbulo, o esquecido,
Que escondeu na amnésia e na neblina
Todos os castelos de ouro dos seus sonhos.
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Nota
Este é mais um poema dos anos 1980. E traz a marca de um tempo de despertar.
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