Rabia al-Adawiyya

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Nascida em família tão pobre que não possuía sequer uma medida de óleo para acender a lamparina à noite; raptada, vendida como escrava e sobrecarregada de trabalho até a exaustão; Rabia al-Adawiyya, a grande mística sufi do século VIII d.C., foi finalmente reconhecida como mestra em um contexto patriarcal no qual a mulher não tinha vez nem voz. Sua concepção do amor místico, que prenuncia Francisco de Assis e Teresa de Ávila, foi expressa com uma radicalidade talvez jamais igualada. Recriamos, aqui, seu mais famoso poema, definitivo, assustador e belo como a queda de um raio:

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Senhor:

Se te amo pelo anseio do Paraíso,

Priva-me dele;

Se te amo pelo temor do Inferno,

Atira-me nele.

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Para essa santa e sábia, nenhuma expectativa, senão a de manifestar gratuitamente o amor, podia se interpor entre ela e o Amado; nenhuma recompensa, senão o gozo de amar, podia premiar sua entrega total.

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Rabia al-Adawiyya nasceu entre os anos 713 e 717, em Basra, no Iraque. E morreu em 801, em Jerusalém, no Monte das Oliveiras, o mesmo lugar onde, quase oito séculos antes, Jesus rezou. Seu nome, Rabia, vem do fato de ela ter sido a quarta filha de seus pais. Diz-se que, na noite em que nasceu, não havia, na casa, sequer uma peça de pano para enfaixá-la. Naquela mesma noite, seu pai viu, em sonho, o Profeta Muhammad, que lhe anunciou que a recém-nascida era uma “favorita do Senhor” e iria “conduzir muitos muçulmanos ao caminho reto”.

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Esta e outras passagens da vida de Rabia foram transmitidas à posteridade pelo grande poeta e mestre sufi Farid ud-Din Attar (c. 1145 – c. 1221). Tendo vivido quase meio milênio depois de Rabia, Attar baseou-se em uma tradição que, já no seu tempo, era antiga, e havia amalgamado fatos e lendas em um todo indiscernível. Os leitores interessados poderão encontrar vários desses relatos na obra-prima de Attar, A linguagem dos pássaros [1].

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Com a morte do pai, e estando Basra assolada por uma grande fome, Rabia e suas irmãs tiveram que abandonar a região, em busca de um lugar melhor para viver. Porém a caravana em que viajavam foi assaltada por bandidos. E o chefe dos ladrões a vendeu como escrava no mercado. Cumulada de trabalhos extenuantes, Rabia, ainda assim, manteve acesa em seu coração a chama da aspiração espiritual. Seguindo, talvez sem sequer saber que o fazia, o exemplo do Profeta Muhammad, passava muitos dias em jejum e dedicava noites inteiras à prece e à contemplação [2].

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Certa noite, seu amo escutou-a rezar em voz baixa: “Senhor! Tu sabes que minha aspiração mais profunda é realizar teus mandamentos e servir-te de todo o coração. Ó luz dos meus olhos! Se fosse livre, eu passaria todos os dias e todas noites em oração. Mas o que posso fazer se me tornaste escrava de um ser humano?” Aquelas palavras tocaram profundamente a sensibilidade do homem e despertaram uma alma talvez há muito adormecida. Imediatamente, ele entendeu que era inaceitável manter como servidora uma santa de tal magnitude. Na manhã seguinte, ofereceu-lhe a liberdade e também a opção de permanecer na casa, como patroa, ou deixar a casa, e seguir seu caminho. Rabia escolheu partir, para se dedicar integralmente à vida ascética.

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Dirigindo-se ao deserto, passou a viver em uma cabana. Suas únicas posses, além de poucas peças de roupa, eram um jarro quebrado, um tapete de orações, para realizar as prostrações prescritas pelo cânone islâmico, e um tijolo, que utilizava com travesseiro. Pão velho era o alimento de seu corpo. A prece e a contemplação, reiteradas dia e noite, eram o alimento de sua alma.

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Seu murshid, ou instrutor espiritual, era o famoso Hassan de Basra. Filho de pais persas, mas educado na casa de Umm Salama, uma das viúvas de Muhammad, Hassan conviveu com muitos dos chamados “Companheiros”, que receberam, em primeira mão, as mensagens do Profeta. Com o tempo, veio a se tornar um dos primeiros grandes mestres na senda do sufismo. Mas, ao que parece, a autorrealização de Rabia dependeu menos das instruções desse professor ilustre do que de uma vocação demonstrada desde muito cedo. Como viria a acontecer, mais de mil anos depois, com outra santa de excelsa grandeza, a indiana Ananda Moyi Ma, a autorrealização de Rabia ocorreu espontaneamente, não como resultado de décadas de complicados exercícios espirituais, mas como expressão natural de um fruto que já chegara maduro a este mundo. Prodígios crescentes acompanharam sua escalada mística. E as notícias desses dons, que rapidamente se espalharam, trouxeram numerosos candidatos a discípulos à sua porta.

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Rabia recebeu também numerosas propostas de casamento, inclusive uma do próprio Hassan, mas optou por permanecer celibatária e virgem até o final de sua longa vida. Fazendo de cada respiração um testemunho de seu amor incondicional a Deus, a mística não admitia que pudesse ser outro o objeto de sua atenção.

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Um poema famoso de Rabia, que, com certa liberdade, aqui recriamos, expressa esse amor exclusivo em versos de meridiana clareza:

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Ó irmãos! Na solidão, minha paz reside.

Pois, se estou só, meu Amado está comigo.

Percorri mundos, e nunca encontrei

O que pudesse com esse Amor rivalizar.

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É Ele o deserto sem limites,

Onde as areias de meu afeto erguem dunas.

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Se, de amor, eu viesse a morrer um dia,

Porém deixasse meu Amado insatisfeito,

Ainda que morta, por amor, eu viveria,

Mas morrendo, em eterno desespero.

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Largar tudo para alcançar apenas Ele:

Tal é minha meta e meu caminho.

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[1] Attar, Farid ud-Din. A linguagem dos pássaros. São Paulo, Attar Editorial, 1987.

[2] Disse Muhammad: “São três os adornos do corpo: comer pouco, falar pouco, dormir pouco. São três os adornos do coração: paciência, silêncio, gratidão” (Hadits do Profeta).