Confiança (um fragmento de Ibn Árabi)

Michelangelo

*

“Eu disse: sois deuses” (Salmo 82:6; João 10:34)

*

Apresentação

Aqui e agora, em um contexto no qual tantas vezes desconfiamos de Deus e de nós mesmos, este fragmento de Ibn Árabi brilha como um diamante perdido na areia, de repente evidenciado pela luz do Sol. Ele inverte a seta da relação. Não é o humano que fala, mas Deus. E Deus fala de sua confiança no humano.

*

O Fragmento

Tu és meus Nomes, o signo de minha Essência.

Aquele que te vê… me vê.

Aquele que te honra… me honra.

Aquele que te despreza… se despreza…

*

Tu és meu espelho, minha casa, minha habitação;

Tu és o tesouro de meu mistério e o lugar de minha ciência.

Se não existisses, Eu não teria sido conhecido,

Nem adorado, nem agradecido, nem renegado…

*

Nota explicativa

Este pequeno fragmento em prosa – que traduzi e editei em forma versificada, para destacar e ressaltar toda a força de suas afirmações magistrais – faz parte do Livro das contemplações dos segredos sublimes (Kitâb mashâhid as-asrâr al-qudsiyya), escrito por Ibn Árabi em 1194, no limiar de seus 30 anos de idade.

Trata-se de um exemplo ultraconcentrado do Waḥdat al-Wujūd — “Unicidade do Ser” –, que constitui o núcleo do pensamento e da prática do grande místico sufi.

O título “Confiança” não faz parte do fragmento. Eu o adotei para poder intitular a postagem, e enfatizar uma qualidade que talvez seja a mais necessária neste lugar e nesta hora. Pois, como diz o Corão, “nenhuma folha cai da árvore sem que Ele saiba”.

Segundo Ibn Árabi, o homem contém virtualmente todos os Nomes Divinos. Por isso, foi designado Representante (Khalîfa) de Deus na Terra. Porém, para que possa assumir verdadeiramente essa função, precisa abrir mão de toda ilusão de Soberania (Rubûbiyya), pois a Soberania só a Deus pertence, e mergulhar na mais completa Servidão Ontológica (Ubûdiyya).

O próprio Ibn Árabi foi um exemplo extremo de Ubûdiyya. Nascido em família aristocrática, até mesmo principesca, e preparado pelo pai para seguir uma brilhante carreira militar e política, teve seu primeiro desvelamento místico por volta dos 14 ou 15 anos de idade. Essa experiência mudou radicalmente sua trajetória de vida.

Ao ingressar em seguida no Caminho Espiritual, seu primeiro mestre, que se manifestou a ele não em carne e osso, mas como visão sobrenatural, foi Jesus. ‘Îsâ ibn Maryam — Jesus filho de Maria — é considerado pelo islamismo como um Profeta e Santo da mais elevada estatura. E Jesus lhe recomendou a via da ascese e da renúncia.

Seguindo radicalmente essa orientação, Ibn Árabi abriu mão de todas as suas posses mundanas. Como Francisco de Assis, renunciou até mesmo à roupa do corpo, e passou a usar as que lhe eram emprestadas. A essa renúncia material seguiram-se outras, mais sutis. Por exemplo, a renúncia a qualquer pretensão de autoria. Escritor de uma obra gigantesca, afirmou que seus principais livros lhe foram inspirados ou desvelados por meios misteriosos, e que nenhuma de suas palavras era produto de especulações mentais ou de disposições egoicas.

É claro que, para a maioria de nós, isso tudo constitui um ideal muito difícil de imitar. Mas pode ser, sim, o paradigma para um processo gradativo de mudança.

Traduzi o fragmento para o português a partir da tradução francesa de Claude Addas, em seu livro Ibn Arabî et le voyage sans retour.

*