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Adora o Senhor! Adora o Senhor!
Adora o Senhor, ó tolo!
Pois, quando chegar a hora destinada,
De nada valerão as regras da gramática.
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Livra-te da miragem das riquezas,
Concentra tua mente apenas no Real,
Contenta-te com o que te suceder,
Como fruto das ações que praticaste.
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Não te deixes engolfar pela ilusão
Ao veres o umbigo e o seio da mulher.
Eles são carne e gordura, nada mais.
Lembra-te disto, uma e outra vez.
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Como a gota que tremula sobre o lótus,
Assim é incerta a vida humana.
Percebe como o mundo está enredado
Na tristeza, na doença, no conceito.
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Enquanto possui força para sustentar,
O homem tem o afeto de quem sustenta.
Mas quem o sustentará quando lhe faltar força
E a idade curvar a linha de seu corpo?
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Enquanto o ar soprar por suas narinas,
Seus familiares perguntarão a ele se está bem.
Mas quem não crispará o rosto ante o cadáver,
Quando o sopro da vida o abandonar?
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O menino se entretém com seus brinquedos,
O jovem com o encanto da mulher,
O velho com a lembrança do passado.
Haverá tempo para contemplar a Eternidade?
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Quem é tua esposa? Quem é teu filho?
De onde vieste? Para onde vais?
Bem estranha, gira a roda do Samsara!
Ó irmão, medita nisto, mais e mais.
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Na Satsanga, se cultiva o desapego,
O desapego emancipa da ilusão,
Sem ilusão, chega-se à estabilidade,
Com estabilidade, advém a libertação.
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Que é feito da luxúria se a juventude seca?
De que serve o lago que já não possui água?
Aonde vão os parentes quando a fortuna acaba?
Pode subsistir o Samsara quando a Verdade brilha?
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Não te gabes de riqueza, amigos, juventude.
Pois tudo podes perder em um instante.
Liberta-te das vagas que o sopro de Maya faz surgir
E ancora tua atenção no mar do Absoluto.
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Dia e noite se alternam em sua ronda,
O frio inverno sucede a primavera,
O tempo vai e a vida se esvai,
Mas a tormenta do desejo nunca cessa.
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Ó tolo, por que te perdes em busca da riqueza?
Não há ninguém capaz de guiar teus passos?
Só um caminho pode salvar-te nos três mundos.
Apressa-te e percorre-o com que sabe.
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Muitos deixam seus cachos emaranhados,
Muitos raspam cada fio de suas cabeças,
Muitos juntam seus cabelos em um coque.
Mas quem vê a Verdade em frente aos olhos?
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Com carnes flácidas, segue o velho pelo mundo,
A cabeça calva, as gengivas desdentadas,
Seus passos trôpegos, ele os sustenta com muletas.
Mas a força do desejo não o deixa.
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Ao seu lado, desnudo, senta-se imóvel o asceta,
Come da comida que lhe dão em uma tigela,
Resiste ao sol que queima e ao frio o enregela.
Mas é um fantoche nos dedos das paixões.
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Podes mergulhar no Ganges para te purificares,
Cumprir jejuns, dar tua fortuna em caridade,
Porém, se não houver sabedoria em teus atos,
Nem em mil vidas alcançarás a libertação.
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Aquele que cede à luxúria por prazer
Deixa seu corpo ser uma presa da doença.
Embora a morte traga um fim ao que existe,
O homem não desiste do caminho do pecado.
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A riqueza não traz o bem-estar,
De fato, não está nela a alegria.
O homem rico teme até seu próprio filho:
Assim a riqueza lhe ordena que o faça.
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Controla o prana, recolhe os sentidos,
Discrimina entre o Real e o transitório,
Aquieta a mente, invoca os Nomes Santos,
E resiste ao poder da distração.
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Ó devoto dos pés de lótus do Guru!
Possas em breve estar livre do Samsara.
Com os sentidos e a mente controlados,
Experimentarás o Senhor no coração.
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Adora o Senhor! Adora o Senhor!
Adora o Senhor, ó tolo!
Se não invocas os Nomes do Senhor,
Como cruzarás o oceano deste mundo?
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Nota explicativa
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Bhaja Govindam (Adora o Senhor) constitui, juntamente com Dakshinamurti Stotram e Tripurasundari Ashtakam (ambos também postados neste blog), a tríade dos poemas máximos de Shankaracharya. Considerado o maior filósofo da Índia e o principal expoente do Advaita (a não-dualidade), Shankaracharya (788 d.C. – 820 d.C.) foi também um poeta excepcional.
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Govinda, que significa “Vaqueiro”, mas também é traduzido como “Aquele que dá prazer aos sentidos”, é um Nome Divino caracteristicamente atribuído Krishna.
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A história deste poema é muito interessante. Diz a tradição que foi composto de improviso durante a famosa peregrinação de Shankaracharya à cidade santa de Kashi (Varanasi). Ele caminhava na companhia de 14 discípulos, quando, em um ghat (escadaria) às margens do Ganges, viu um velho gramático dando aula a seus alunos. Assim como algumas outras religiões, o hinduísmo bramânico é extremamente minucioso e atribui uma importância enorme à prática rigorosa dos ritos e à recitação perfeita dos hinos e invocações. Fiel a essa herança cultural, o gramático louvava com entusiasmo as maravilhas do idioma sânscrito e a correção das regras gramaticais. Compadecido por esse homem, que se distraía com o acessório e deixava escapar o essencial, já próximo do fim da vida e ainda tão distante da meta, Shankaracharya criou, de um só fôlego, a primeira estrofe do poema:
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Adora o Senhor! Adora o Senhor!
Adora o Senhor, ó tolo!
Pois, quando chegar a hora destinada,
De nada valerão as regras da gramática.
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As outras estrofes sucederam-se com fluência – algumas acrescentadas pelos discípulos –, compondo um discurso que funde, de maneira exemplar, o conteúdo austero do Advaita Vedanta com a forma apaixonada do Bhakti Yoga (o Yoga devocional).
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Shankaracharya concebia Deus como a única realidade existente: o “Um sem um Segundo”, ao mesmo tempo transcendente e imanente. Transcendente, existiria em si mesmo, como o inefável Brahman; imanente, se manifestaria de maneira velada, por trás da aparência dos entes e fenômenos do mundo. Sri Ramana Maharshi (1879 – 1950), um dos grandes santos e sábios da Índia contemporânea, resumiu todo o pensamento de Shankaracharya em uma frase curta e magistral: “O mundo é ilusório. Só Brahman é real. Brahman é o mundo”. Isso não quer dizer que Shankaracharya tenha negado a realidade do mundo, como erroneamente interpretaram alguns. Ele apenas negou que o mundo fosse o que aparenta ser: uma realidade autossuficiente, independente do Divino.
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Para esse monismo radical, o Criador e a criatura são um e o mesmo, não podendo haver separação real entre ambos. Tal compreensão não impediu, porém, que o grande filósofo reconhecesse o valor do Yoga devocional e exaltasse a relação amorosa entre o homem e Deus. Pois, se é certo que o amante procede do Amado, sendo, portanto, o próprio Amado, também é certo que sua verdadeira natureza se encontra velada. Separado da Essência pelo véu da aparência, o homem sofre a dor da distância e da ausência, e aspira e suspira por si mesmo, em um anseio de retorno e reunião.
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Uma anedota muito saborosa, associada ao Bhaja Govindam, ressalta a força da ilusão, que separa a aparência da Essência. Shankaracharya foi um debatedor insuperável. E havia, em seu tempo, uma regra de etiqueta nos debates: aquele que perdesse devia reconhecer a superioridade do adversário e pedir para ser seu discípulo. Segundo a tradição, Shankaracharya converteu, dessa maneira, muitos oponentes em seguidores. Porém, em um desses debates (e é a este que a anedota se refere), o adversário tinha uma esposa, que, em certa altura da discussão, pediu a palavra e fez a Shankaracharya uma pergunta relativa à vida conjugal. O grande advaitim (partidário do Advaita) nada sabia do assunto, porque era celibatário. Sem poder responder, pediu que o debate fosse suspenso para que tivesse tempo de refletir.
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Longe do olhar do oponente, Shankaracharya descobriu que um príncipe, que possuía um grande harém, acabara de morrer. E, utilizando seus poderes ióguicos, transmigrou seus corpos sutis para o corpo físico do príncipe morto. Este, aparentemente, voltou à vida. Com o novo corpo, o filósofo experimentou, então, a vida principesca. E tão fascinado ficou com o palácio, o harém e tudo mais que esqueceu quem era.
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Os discípulos, que acompanhavam os acontecimentos a uma certa distância, ficaram apavorados, pois perceberam que seu mestre, com a consciência obstruída pelos véus de Maya, estava sendo arrastado para bem longe pela roda do Samsara. Aproximaram-se, então, dele, e recitaram a primeira estrofe do Bhaja Govindam. Shankaracharya imediatamente lembrou quem era. E, regressando ao seu próprio corpo físico, voltou ao debate. Com o que aprendeu na falsa vida de príncipe, pôde responder de forma satisfatória a pergunta da esposa do oponente. Conquistou, assim, dois novos seguidores.
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Shankaracharya compôs o Bhaja Govindam no idioma sânscrito, em quadras rimadas e metrificadas. Como o meu parco conhecimento do sânscrito se resume a algumas dezenas de palavras, recriei o poema em português a partir de uma tradução inglesa, disponível em http://sanskritdocuments.org/doc_vishhnu/bhajagovindam.pdf. Pelo fato de o poema ser muito longo, eliminei as estrofes atribuídas aos discípulos. E fiquei apenas coma aquelas que a tradição creditou ao próprio Shankaracharya.
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O tradutor para o inglês se ateve ao conteúdo dos versos e ao significado das palavras, porém abriu mão da estrutura poética. Procurei reconstruí-la em português, pois, além dos ensinamentos filosóficos que contém, o poema utiliza imagens belíssimas. Não obedeci aos rigores da métrica, mas estruturei minha recriação em quadras de versos, utilizando, eventualmente, recursos poéticos como a aliteração, a rima etc.
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Os dois outros poemas que compõem a tríade suprema de Shankaracharya estão disponíveis neste blog em:
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https://josetadeuarantes.wordpress.com/2013/05/09/dakshinamurti-stotram-um-poema-de-shankaracharya/
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https://josetadeuarantes.wordpress.com/2012/02/16/tripurasundari-ashtakam/
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Há várias recitações do Bhaja Govindam disponíveis na internet. Uma que eu gosto é cantada por Gaiea Sanskrit. Aqui vai o link: https://www.youtube.com/watch?v=xb-Go2fLdPY
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