O Itinerário da Consciência

CADERNO 2009-12

Sem título, JTA, 2009

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“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre o abismo” (Nietzsche, 1844 – 1900)

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“Mil vezes nascesse o Cristo em Belém, mas não em ti: ficarias eternamente perdido” (Angelus Silesius, 1624-1667)

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Plotino situou o homem a meio caminho entre as bestas e os deuses. Se desta genial imagem devêssemos derivar uma explicação para o drama humano, diríamos que ele nasce da tensão entre os dois limites: os animais que já não somos; os deuses que ainda não somos.

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Nos próprios termos “já” e “ainda” está implícita a ideia de processo, de movimento. O homem não está apenas no caminho: ele caminha. E, nesse caminhar, afasta-se da animalidade, constitui-se humano, cada vez mais humano, para afinal transcender a própria humanidade.

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A crítica contemporânea negou a existência desse homem genérico, para ressaltar sua condição cultural: econômica, social, política, ideológica e tantas outras. Mas isso é apenas o exagero unilateral de uma filosofia deficiente. Pois, sob a pesada roupagem das sobredeterminações, existe um Eu atemporal, em sua imaculada nudez, cuja realidade primeira e última é a própria Realidade.

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As sobredeterminações compõem suas personas – que Max Ernst fustigou, com dadaísta implacabilidade, no quadro “É o chapéu que faz o homem”. Mas, por baixo do chapéu, está a cabeça. E, na cabeça, o seu Ori.

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Max-Ernst

C’est le chapeau qui fait l’homme, Max Ernst, 1920

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Marx espantava-se com o fato de que a tragédia grega fosse capaz de emocionar tão fortemente, quando as condições econômico-sociais em que ela fora produzida já estavam há muito ultrapassadas. Talvez, virando Marx de cabeça para baixo, como ele pretendeu fazer com Hegel, encontremos a chave do enigma. Pois, independentemente das “condições econômico-sociais”, nosso espírito é o espírito dos gregos. E nossa alma simpatiza com a alma deles.

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Como um primitivo apanhador de fogo, transportando brasas vivas, protegidas pela cinza, no interior de uma cabaça, a alma transporta esse espírito vida após vida, para realizá-lo em graus cada vez maiores de completude e perfeição.

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Tropeça nas pedras soltas, cai, e se reergue; estanca diante do obstáculo, empreende uma longa circum-ambulação, e torna a avançar; exausta no crepúsculo, renova-se ao contatar outra vez sua fonte no mundo dos sonhos, e volta a caminhar na manhã seguinte. Seu esforço reiterado, obstinado, abnegado define o itinerário da consciência.

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Por baixo da superfície dos fenômenos, em que operam os mecanismos aparentemente fortuitos das sobredeterminações, uma tração irresistível confere a todo o processo sentido e finalidade. Para pensarmos com Hegel, essa tração colossal, de escala cósmica, não é outra coisa senão o movimento do próprio espírito, que, superando sua alienação na matéria, busca se reencontrar.

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As consequências dessa tração só podem ser teoricamente acolhidas no quadro de um evolucionismo radical. Não o evolucionismo reducionista de Darwin. Menos ainda o reducionismo neodarwinista, que nem chega a ser um evolucionismo. Mas o evolucionismo radical de um Teilhard de Chardin (1881 – 1955)  ou de um Aurobindo (1872 – 1950).

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Ecoando Hegel, Aurobindo afirmou: “A matéria é, ela mesma, uma forma do espírito, e deve desvelar-se como tal. Ela pode ser despertada para a consciência, evoluir e realizar o espírito. O corpo – tanto quanto a vida e a mente – deve ser espiritualizado, ou, poderíamos dizer, divinizado, a fim de se tornar um receptáculo e um instrumento apto a realizar o Divino”.

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O itinerário da consciência, que é a saga do apanhador de fogo, a saga da alma que busca realizar o espírito, está compactado na imagem da corda estendida sobre o abismo de Nietzsche. Ou na alegoria dos “três mundos”, recriada de diferentes maneiras por tantas tradições espirituais: o “mundo subterrâneo”, inconsciente, pré-pessoal, instintivo; o “mundo terreno”, consciente, pessoal, racional; o “mundo celestial”, superconsciente, transpessoal, transcendente.

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A ideia é, no mínimo, tão antiga quanto as mais antigas upanishads, cuja datação recua ao sexto ou sétimo século antes de Cristo. No contexto da mística cristã medieval, ideia semelhante foi comunicada, por filósofos como Hugues de Saint-Victor (1096 – 1141) e Bonaventura da Bagnoregio (1217/1221 – 1274), na alegoria dos “três olhos do conhecimento”: o “olho da carne”, voltado para o conhecimento das realidades sensíveis; o “olho da razão”, voltado para o conhecimento das realidades inteligíveis; e o “olho da contemplação”, voltado para o conhecimento das realidades transcendentes.

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E, no contexto da mística islâmica, é bem conhecida a frase de Muḥammad al-Ghazali (c. 1058 – 1111), com a qual o filósofo persa rebateu os argumentos por meio dos quais os racionalistas de sua época pretendiam deslegitimar as experiências suprarracionais dos ascetas sufis: “A criança não compreende as realizações do adulto. O adulto comum não compreende as realizações do homem de saber. Assim também, o homem de saber não compreende as realizações dos santos iluminados”.

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Sintetizando o legado das grandes tradições espirituais com as aquisições da psicologia contemporânea, Ken Wilber compôs o que chamou de “mapa mandálico da consciência”. Seu modelo – um tanto esquemático, mas, ainda assim, instigante – descreve o itinerário evolutivo da consciência como um desdobramento hierárquico e dinâmico de níveis: estruturas que se formam e, ao se formarem, englobam e ao mesmo tempo transcendem as estruturas anteriores. Desdobramento após desdobramento, a consciência evolui em um sentido de crescente complexidade, articulação e integração.

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O roteiro rastreia tanto o desenvolvimento da consciência individual quanto da consciência coletiva, pois, assim como acontece na estruturação do sistema nervoso, também na constituição da psique a ontogênese repete a filogênese – ou, melhor dizendo, são ambas informadas por um mesmo padrão.

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Ocorre-me agora a imagem de uma formiguinha caminhando em cima de uma esteira rolante. Ela deve ter seus motivos. Mas, para quem observa o movimento de fora, seu vaivém parece aleatório. Subjugada pelas premências do presente imediato e confinada em uma consciência quase bidimensional, ela se move para lá e para cá como barata tonta, sem saber que a esteira a carrega para frente.

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Mas, exatamente por que a esteira avança, em algum ponto da trajetória, a formiguinha desloca seu senso de identidade: do formigueiro para a minúscula cabeça. Deixa de ser um número para se tornar um ego. É uma revolução! Porém, sem saber ainda como utilizar corretamente o novo recurso, ela começa a querer levar vantagem em tudo. Logo, passa a explorar e a oprimir suas semelhantes, a perseguir e a eliminar suas oponentes, e a produzir um grande estrago no pequeno segmento da esteira que ocupa. Não suporta quem seja diferente. Mesmerizada diante da tela de seu smartphone, fica imóvel por horas a fio. Depois, sentindo-se poderosa, volta a caminhar, repetindo em voz alta as últimas lições aprendidas na televisão.

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Porém, o movimento da esteira continua. E, por força dessa tração irresistível, em um novo ponto da trajetória, talvez depois de um milhão de encarnações, a formiguinha começa a entender alguma coisa, e a gostar de entender, e a querer entender cada vez mais. Entendendo, eventualmente se dá conta do arraste da esteira, e da influência que isso exerce em sua vida. Ter e dominar parecem-lhe, agora, objetivos mesquinhos, irrisórios, ilusórios. Indo além, percebe que ela, a esteira e o narrador que a observa são o Mesmo: diferentes manifestações da Realidade Unitária.

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Chartres

Plano do labirinto da Catedral de Chartres, França.

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