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Em certa árvore há um pássaro, que canta a alegria da vida.
Nos galhos mais escondidos, lá ele pousa e repousa.
Chega ao descer o crepúsculo e parte ao erguer-se a aurora.
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Quem sabe que pássaro é esse que canta dentro de mim?
Não tem forma nem cor, não tem contorno nem estofo.
Pousa na sombra do amor e repousa no inatingível.
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Kabir diz: Ó sadhu, meu irmão, profundo é este mistério.
Deixa que os sábios descubram onde tal pássaro se esconde.
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Nota
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A metáfora do “pássaro solitário” — que não se deixa aprisionar pela gaiola das convenções sociais, nem submete seu voo aos alinhamentos do bando — expressa um tema muito forte da mística. Grandes místicos, de diferentes tradições, foram “pássaros solitários” em seus respectivos contextos. E talvez seja mesmo inevitável que todo buscador espiritual, em algum ponto de sua trajetória, encontre em seu caminho o arquétipo do “pássaro solitário”, e deva vivenciá-lo e integrá-lo, para poder seguir adiante.
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No contexto cristão, a mais conhecida formulação acerca do “pássaro solitário” foi feita por San Juan de la Cruz (1542 – 1591). Com as seguintes palavras, o grande místico espanhol enunciou as cinco propriedades dessa figura arquetípica:
- “a primeira é que ordinariamente se coloca no local mais alto;
- a segunda é que sempre volta o seu bico para o lugar de onde vem o ar;
- a terceira é que geralmente está só e não admite nenhuma outra ave junto de si, senão que, pousando alguma por perto, logo se vai;
- a quarta é que canta muito suavemente;
- a quinta é que não é de nenhuma cor determinada”.
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A época da vida de Kabir, datada pelos estudiosos entre os anos 1398 e 1518, é um pouco anterior à de San Juan de la Cruz. Embora as características dos “pássaros” referidos pelos dois mestres se assemelhem muito, o poeta indiano emprestou à sua ave simbólica uma expressão mais alegre.
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Este poema, recriado em português a partir da tradução inglesa de Rabindranath Tagore, está publicado em meu livro Kabir: Cem Poemas (Attar Editorial, 2013).
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