No dia da partida (um poema de Ibn Árabi)

Yazd

Azulejos da Grande Mesquita de Yazd, Irã. Foto: Erik Albers.

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No dia da partida, selaram o camelo castanho,

Para que sobre ele montasse o pavão,

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Pavão de olhares assassinos e poder soberano,

Como Bilqis entre as pérolas de seu trono. [1]

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Quando ela caminha sobre pavimentos vítreos,

É o Sol na esfera celestial do coração de Idris. [2]

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Quando ela assassina com seus olhares mortíferos,

É Jesus, dizendo a palavra que restitui a vida.

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Suas pernas, lado a lado, são os rolos da Torá,

E eu sigo o rastro de suas pegadas, qual trôpego Moisés.

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Ela é a sacerdotisa sem adornos, a pagã filha de Roma,

E eu vejo nela só bondade, a bondade radiante.

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Selvagem, ninguém pode torná-la sua amiga.

Ela fez de sua câmara solitária o túmulo da recordação.

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Se, com um gesto displicente, ela pede o Evangelho,

Como não seremos sacerdotes, patriarcas ou diáconos?

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Ela confundiu cada sábio do Islã,

Cada rabino judeu, cada sacerdote cristão.

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No dia em que eles partiram na estrada,

Mobilizei, hoste após hoste, o exército da paciência.

 

Quando minha alma alcançou a garganta,

Supliquei pelo alívio da Graça e da Beleza.

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E ela cedeu – possa Deus proteger-nos de seu mal,

Possa o Rei Vitorioso rechaçar o Adversário! [3]

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Quando sua montaria se pôs em movimento, exclamei:

Ó condutor do camelo acastanhado, não a leve na viagem!

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Notas

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[1] Bilqis é o nome arábico da rainha de Sabá, mencionada na Bíblia judaica e no Corão. Segundo o relato, sua beleza e opulência teriam fascinado o rei Salomão.

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[2] Idris, cujo nome significa “sábio”, é um dos principais profetas do Islã. Corresponde ao Enoque do Antigo Testamento da Bíblia.

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[3] Aqui, a palavra “Adversário” foi usada em substituição a Iblis, o equivalente islâmico de Satã.

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Explicação

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Este é mais um poema do Tarjuman al-ashwaq (“O interprete dos desejos ardentes”), de Ibn Árabi. Reproduzo aqui, com algumas modificações, parte da nota que escrevi quando traduzi e publiquei no Blog outro poema da mesma obra.

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“O interprete dos desejos ardentes” foi escrito por Ibn Árabi na cidade de Meca, nos meses lunares de rajab, sha’bân, e ramaḍân do ano 611 do calendário muçulmano – que correspondem à transição de 1214 para 1215, no calendário gregoriano. O grande místico andaluz, que os sufis denominam ash-shaykh al-akbar, “o maior dos mestres”, e que que viveu entre 1165 e1240, tinha então 49 anos. Estava no auge da maturidade, tendo já obtido suas principais aquisições espirituais.

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A tradição atribuiu a Ibn Árabi cerca de 800 livros. Destes, mais de cem se preservaram e foram devidamente autenticados pelos estudiosos, com todos os recursos do aparato crítico contemporâneo. Seu opus magno, Al-futûhât al-makkiyya (“Os desvelamentos de Meca”) contém, na edição moderna em árabe, cerca de 15 mil páginas. Menos de dez por cento desse conteúdo gigantesco foi, até o momento, traduzido em línguas ocidentais. Outro tratado importante, de dimensão incomparavelmente menor, foi, este sim, traduzido e exaustivamente comentado. Refiro-me a Fusûs al-hikam (“Engastes das sabedorias”).

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Ao lado dessas duas obras monumentais, “O interprete dos desejos ardentes” compõe a tríade dos livros mais famosos de Ibn Árabi. Diferentemente dos outros dois, porém, escritos em prosa ultradensa, impregnados de citações do Corão e dos Hadith (os ditos atribuídos ao profeta Muhammad), e redigidos com o uso abundante da terminologia técnica do tasawwuf (sufismo), o “Interprete” consiste em um conjunto de poemas, de aparência erótica, mas cuja natureza mais profunda, como o próprio autor ressaltou, é de substância espiritual.

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Assim como ocorreu com “Os desvelamentos de Meca”, também a inspiração para “O interprete dos desejos ardentes” veio a Ibn Árabi em sua primeira peregrinação à cidade santa do Islã, no ano 598 do calendário muçulmano (1202 do calendário gregoriano). Mas, se a fonte imediata da inspiração no caso dos “Desvelamentos” foi uma experiência espiritual, talvez a mais esotérica das inúmeras experiências esotéricas vividas pelo grande místico, o fator que motivou a composição dos poemas do “Intérprete” foi um encontro humano – intensamente humano.

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No início da noite, em estado de êxtase, Ibn Árabi realizava, mais uma vez, a circum-ambulação ritual da Caaba, enquanto recitava em voz alta versos que ia compondo no momento. Sentiu, então, um toque suavíssimo em suas costas. Virou-se e viu uma jovem de excepcional beleza, que o inquiriu: “Ó mestre, o que acabas de dizer?”. Ele repetiu os versos, um a um. E, um a um, ela os interpretou. Encantado com sua aparência, inteligência e sutileza, Ibn Árabi perguntou-lhe o nome. “Nizam (Harmonia)”, ela respondeu.

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Filha de um eminente shaykh persa, Nizam Ayn ash-Shams wa al-Baha (Harmonia, Olho do Sol e da Beleza) participava de uma requintada elite intelectual e espiritual, liderada por seu pai. Ibn Árabi frequentou esse grupo durante sua primeira estadia em Meca. E, depois, o viu partir.

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Referindo-se Nizam, escreveu: “Sempre que olha, ela atira espadas incisivas, e seu sorriso é um relâmpago deslumbrante”. Mas, ao contrário do que afirmaram algumas biografias romanceadas do grande mestre, os dois jamais se casaram. E, provavelmente, não tiveram outro contato físico além do sutilíssimo toque nas costas com o qual ela pediu a atenção dele durante a circum-ambulação da Caaba.

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Ibn Árabi teve duas esposas e filhos. Embora existam informações detalhadas sobre seus numerosos mestres, companheiros e discípulos, quase nada se sabe acerca dessas esposas. Mas, com certeza, Nizam não foi uma delas. Como afirmou Henry Corbin, a jovem persa foi para o místico andaluz o mesmo que Beatriz foi para Dante: a expressão  de um ideal sublime.

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Para permanecer sublime, esse ideal não pode se efetivar. Bem concreta em sua corporeidade, Nizam precisou ser subtraída da mera empiria, para se tornar, por excelência, um locus epifânico. Como dois astros cujas trajetórias se cruzam uma vez a cada século, Ibn Árabi e Nizam se encontraram, se iluminaram reciprocamente, e depois partiram, talvez sabendo que não voltariam a se rever nesta vida.

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O poema recriado acima fala da dor de uma ausência. Trata-se do segundo poema do Tarjuman al-ashwaq.

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Para recriá-lo em português, recorri à célebre tradução inglesa do orientalista britânico Reynold Nicholson. A versão integral desse livro, publicado por Nicholson em 1911, com prefácio, introdução e notas, pode ser acessada em http://sacred-texts.com/isl/taa/index.htm.

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Para quem lê francês e quiser mergulhar fundo na biografia de Ibn Árabi, recomendo o livro Ibn ‘Arabî ou la quête du Soufre Rouge, de Claude Addas. Outro livro de Addas, mais acessível do que o anterior, é Ibn ‘Arabî et le voyage sans retour.

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