Al-Fārābī

Al-Farabi

Uma representação antiga de Al-Fārābī, de autor ignorado.

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Abū Naṣr Muḥammad ibn Muḥammad al-Fārābī (c.872 —  c.950) é considerado não apenas o fundador da filosofia islâmica, mas um dos autores mais influentes na formação das filosofias cristã e judaica medievais. Sua grande realização foi harmonizar Platão e Aristóteles, com base na tradição neoplatônica (Plotino, Proclo e outros), e compatibilizar esse neoplatonismo altamente abstrato com os termos muito mais concretos da revelação corânica [1].

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Há pouquíssimos dados biográficos a seu respeito. Henry Corbin (1903 – 1978), o famoso filósofo e orientalista francês, escreveu que ele teria sido muçulmano xiita. O epíteto Fārābī, acrescentado ao seu nome, dá uma pista sobre o local de nascimento. Mas este pode ter ocorrido em Fārāb, no atual Casaquistão, em Fārāb, no atual Turcomenistão, ou até mesmo em Faryāb, no atual Afeganistão. O que cabe afirmar, com relativa segurança, é que morreu em Damasco, na Síria.

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Os relatos biográficos dizem que passou a maior parte da vida em Bagdá, no Iraque. Então sede do califado abássida, Bagdá era o centro cultural do Islã. E o centro cultural de Bagdá era a Bayt al-Ḥikmah, a Casa da Sabedoria, fundada pelo califa Al-Ma’mun [2]. Eruditos cristãos da tendência nestoriana — condenada como heresia no Primeiro Concílio de Éfeso (431) e no Concílio de Calcedônia (451) — gozaram da proteção das autoridades islâmicas e desempenharam papel proeminente na Bayt al-Ḥikmah. Al-Fārābī teria sido discípulo de um deles: Yuhanna Ibn Haylan.

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Como neoplatônico e sufi, Al-Fārābī superou a dicotomia entre Deus e o mundo por meio de um monismo radical. Em seu sistema filosófico, o mundo é entendido como uma processão (isto é, algo que procede) de Deus e não uma criação ex-nihilo (isto é, a partir do nada) de Deus [3]. Assim, não existe um hiato ontológico intransponível entre o “Criador” e suas “criaturas”. Tudo é Um. Porém a Unidade se estrutura, hierarquicamente, em uma multiplicidade de níveis.

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No cume da hierarquia, está Deus, em sua realidade primordial, que Al-Fārābī denomina o “Primeiro”. Sobre Ele, o filósofo nada pode afirmar, pois qualquer afirmação implica uma limitação. Por isso, seguindo as pegadas do Pseudo-Dionísio Areopagita e de seus antecessores neoplatônicos, Al-Fārābī adota a chamada “via negativa”, e diz que Deus não possui um “outro” e não pode ser definido.

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Do “Primeiro” procede o “Segundo”, que instaura o domínio do Intelecto (o Nous dos antigos gregos). No esquema farabiano, existem 10 Intelectos, cada qual instalado em si mesmo, o que origina os 10 Céus, e cada qual produzindo, por processão, o seguinte, em uma escala decrescente de plenitude e perfeição. O Décimo Intelecto (que corresponde ao 11º termo da série, a partir do “Primeiro”) conecta o mundo celeste ao mundo terrestre. É o Intelecto Agente (Nous Poiétikos, em grego; al-‘aql al-fa’âl, em árabe), o causador do intelecto individual no ente humano, e o produtor das formas no mundo terrestre.

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A inefabilidade do “Primeiro” parece situá-lo a uma distância infinita, tornando-o inacessível. Mas, se aprofundarmos nosso pensamento, concluiremos que o “Primeiro” é o “Único Existente”, sendo todos os outros termos da série suas manifestações. Ele não pode estar “longe” porque está em tudo e tudo está nele. E Al-Fārābī acentua essa intimidade, recorrendo à terminologia dual do Corão, e dirigindo suas súplicas a Deus como o “Senhor dos Mundos” (rabbil ‘alamin).

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Notas

[1] Escrevi há muito tempo uma primeira versão deste texto como nota de rodapé para um artigo sobre Avicena, também postado no Blog. Reli recentemente essa nota e achei que convinha publicá-la como um texto independente. Para isso, acrescentei alguns dados biográficos.

Como filósofo monista, Al-Fārābī insere-se em uma grande tradição que tenho me esforçado por divulgar. Outros textos, disponíveis no Blog, podem contribuir para compreensão de sua filosofia. Sobre o inefável: “A realidade absoluta e suas manifestações primordiais”. Sobre a via negativa: “A teologia mística”, do Pseudo-Dionísio Areopagita. Sobre a possibilidade de compatibilizar o pensamento monista com a retórica dualista: “Três poemas de Shankaracharya” e “Kabir, o tecelão da palavra”.

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[2] Al-Mamum (século IX) era filho de Harum al-Rachid, o célebre personagem de As mil e uma noites. Diz a lenda que sua iniciativa de criar a Bayt al-Hikmah foi inspirada por um sonho no qual Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) lhe pediu que traduzisse suas obras para a língua árabe. O califa superou o pedido e reuniu, na Casa da Sabedoria, um formidável acervo de manuscritos antigos e um excelente corpo de tradutores. Platão e Aristóteles, Euclides e Ptolomeu, Hipócrates e Galeno, e muitos outros autores da Antiguidade clássica e da Antiguidade tardia foram traduzidos para o árabe.

A Casa da Sabedoria tornou-se o maior centro cultural da época. O trabalho de tradução organizou-se nela de forma sistemática: um secretário geral coordenava as atividades e distribuía os manuscritos entre os vários tradutores; cada tradutor era secundado por um redator, encarregado da primeira versão da obra; esta passava, então, pelas mãos de um revisor, que devia expurgar os eventuais erros gramaticais. Seu maior tradutor foi o médico cristão sírio Hunayn ibn Ishaq, que traduziu, do grego ao siríaco e do siríaco ao árabe, todos os tratados médicos de Hipócrates e Galeno.

Muito mais do que simples biblioteca e cento de tradução, a Bayt al-Hikmah foi uma verdadeira precursora das modernas universidades, congregando várias entidades de pesquisa, inclusive observatórios astronômicos. Entre os grandes sábios que trabalharam na Casa da Sabedoria, o mais notável foi o matemático e astrônomo Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi, de cujo nome deriva a palavra algarismo, que se incorporou ao vocabulário de vários idiomas.

Por seu intermédio, chegaram ao Ocidente os algarismos indianos, universalmente adotados sob a errônea denominação de “algarismos arábicos”. Ainda no campo da matemática, Al-Khwarizmi foi autor de um importante tratado sobre a resolução de equações, no qual sintetiza e populariza várias técnicas algébricas de origem indiana. No âmbito da astronomia, sua principal contribuição foi a construção de um conjunto de tabelas que permitiam calcular, com notável exatidão, as posições dos planetas em qualquer época do ano.

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[3] Quando discorrem sobre a filosofia neoplatônica, muitos autores utilizam o termo “emanação” para explicar a produção da realidade múltipla a partir da Unidade Primordial. Mas os estudiosos mais sofisticados consideram que o vocábulo “emanação” não expressa com exatidão o conceito nomeado pela palavra grega pródos – literalmente “processão”. Pois no processo de produção da realidade múltipla não existe uma transmissão de substância das instâncias superiores às inferiores. Todas as instâncias são cossubstanciais.

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