Viver

Marcas de pneus na areia

Praia de Santo Antônio, Bahia, rastros de pneus na areia. Foto JTA.

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Para Paula Desgualdo

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“O mundo é seu próprio véu. Ele não pode ver Deus pelo fato mesmo de que se vê”

(Ibn Árabi)

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“Tudo isto é para habitação do Senhor: tudo que é universo individual de movimento no movimento universal”

(Isha Upanishad)

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Viver enquanto se está vivo

Ou, mais compactamente

Viver enquanto se vive

Ou, resumindo

Viver

Como quem saboreia uma pequena porção

Ou lê um longo parágrafo que começa assim

Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo

Ou, talvez

Essa hora que pode chegar alguma vez fora de toda hora

Então será preciso agarrar a ideia

Porque as palavras transbordarão em atropelo

E o jeito é descer a encosta correndo

Para não tropeçar e cair

Mas, seja  Proust ou Cortázar

Será sempre arábica de altitude,

No ponto perfeito da torra

Sem que se faça o desplante

De colocar adoçante na xícara

Porque, se o mundo é seu próprio véu

Tudo isto é para habitação do Senhor

Tudo que é universo individual de movimento

No movimento universal

Assim, é preciso dizer obrigado

E acolher os filhos e os netos

E abraçar e beijar os amigos

E sorrir aos desconhecidos

E tirar os sapatos na porta

E cuidar dos cinco corpos

E alimentar o kefir e o instagram

E fazer da cotidianidade contemplação

E da contemplação o assombro

E do assombro reverência

Até que sobrevenha a acalmia

Da douta ignorância

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