A indústria do medo

Goya, gravura da série "Los Caprichos", 1799

Goya, gravura da série “Los Caprichos”, 1799

O medo paralisa a vida de milhões de pessoas e movimenta os interesses de minorias poderosas. Após a ação terrorista de 11 de setembro de 2001, o grupo de George W. Bush beneficiou-se com a reeleição e os polpudos negócios proporcionados pela Guerra do Iraque graças a uma habilidosa orquestração do medo. Com o decisivo apoio das grandes corporações da mídia e do entretenimento, não foi difícil amestrar vontades previamente amaciadas pelo fast-food e a televisão. Bastou injetar-lhes doses regulares de medo, facilitadas pelos arroubos retóricos dos chefes terroristas. Em 2013, a orquestração midiática da até agora mal explicada ação terrorista na Maratona de Boston ameaçou gerar um novo surto de histeria coletiva, que, felizmente, não prosperou.

Porém novos pretextos com certeza serão fabricados. Pois, assim como é possível transformar cachorros dóceis em cães ferozes, a indústria do medo esmera-se em fabricar uma “opinião publica” raivosa, distribuindo rações diárias e reforços semanais de notícias alarmantes, açulando preconceitos atávicos e transmutando frustração em revanchismo.

A fórmula é surpreendentemente simples: invente um inimigo e bata reiteradas vezes na mesma tecla. Com os adequados meios de amplificação e propagação, em pouco tempo, muitos estarão convencidos de que todos os gatos são pardos. A receita foi testada pela Inquisição, por Hitler e pelo obscuro senador de Wisconsin Joseph McCarthy. Funciona.

No âmbito doméstico, o medo faz de todo pobre um inimigo potencial e confina os ricos (ou os que gostariam de sê-lo) em um mundo exclusivo de condomínios fortificados, carros blindados, câmeras de televisão, rastreamentos por GPS e escoltas particulares. O “outro” (que se diferencia de “nós” por motivos étnicos, comportamentais ou ideológicos) é o nosso “terrorista” e qualquer pivete parado no semáforo pode ser uma ponta do “crime organizado”. Seria interesse identificar quem se beneficia, direta ou indiretamente, com a paranoia e contabilizar os lucros da proveitosa indústria do medo.

Uma das melhores formas de demonizar alguém é privá-lo de um rosto. Os bons filmes de terror fazem isso com perfeição. Sentimos medo daquilo que não vemos – ou daquilo que apenas entrevemos, na fugacidade do instante e à meia-luz. Iluminar essa figura na penumbra e fixar essa imagem fugidia é o primeiro passo para desmontar seu hipnótico poder de sugestão.

Seja qual for sua motivação imediata, o medo é uma enfermidade sistêmica enraizada em estratos profundos da psique. A indústria do medo explora essa doença com a mesma impiedade e avidez com que o narcotráfico explora a dependência do usuário à droga. É esse tolhimento da liberdade que precisamos superar se quisermos reconquistar nosso direito de viver a plenitude do potencial humano.

Há anos, depois de me irritar diariamente com a “objetividade” do noticiário e as “opiniões” dos colunistas de um jornal de grande circulação, resolvi cancelar a assinatura, dizendo para mim mesmo: “não com o meu dinheiro!”. Pelo mesmo motivo, e como medida profilática, evito fazer contato visual com as manchetes de certas revistas semanais de “informação” e mantenho meu aparelho de televisão quase o tempo todo desligado. Seu silêncio é uma bênção.

Estamos no mundo, mas não precisamos participar de sua loucura. Podemos desarmar nossos espíritos e instalar à nossa volta um cordão sanitário de confiança, cordialidade e gentileza.

Shanti. Shalom. Salam. Eirini. Pax.

Nota

Algumas frases deste texto foram veiculadas por mim, tempos atrás, em um editorial que escrevi para Le Monde Diplomatique Brasil. Infelizmente, essas frases são ainda mais atuais agora do que eram naquela época. Mas vamos em frente!

Deixe um comentário

1 comentário

  1. pedro arantes

     /  4 de maio de 2013

    …”O “outro” (que se diferencia de “nós” por motivos étnicos, comportamentais ou ideológicos) é o nosso “terrorista” e qualquer pivete parado no semáforo pode ser uma ponta do “crime organizado”.”…

    O que me lembra o clássico Orientalismo, de Edward Said. No livro, ele demonstra como a construção desse “outro” serve na verdade como afirmação do “nós”. Construir um outro bárbaro e irracional é também afirmar-se como civilizado e racional: colocamos no outro as características negativas que pretendemos negar em nós, e assim nos afirmamos pela oposição. Portanto, a ameaça que o outro representa vai além da violência contra o patrimônio ou a violência física; é a ameaça da própria aniquilação do eu, da dissolução do mundo “civilizado” pela “barbárie”. Esse é o medo mais profundo e também o mais poderoso.

    Portanto, quando você fala em desarmar-se, é preciso ter em mente que estamos falando de uma tarefa bem mais complexa do que desligar a televisão. Complexa porque requer enxergar de fato o outro, o que por sua vez exige reconstruir-se longe de uma idealização de civilidade e razão. Exige admitir a violência dos seus preconceitos e a irracionalidade daquilo que você até ontem chamava de “bom senso”. Exige reconhecer que o outro também tem história e humanidade, e que talvez seja de fato mais “civilizado” do que você pensava. Talvez seja mesmo mais civilizado do que você. Exige enfim uma afirmação positiva da sua identidade, que não necessite negar o outro para afirmar-se.

    Claro que os meios de comunicação estão jogando na direção contrária, estão a favor de estereotipar o outro ao invés de dar-lhe voz. Estão obviamente a serviço de construir e manter um mundo no qual “nós” e nossa “civilização” devemos nos defender do “outro” e de sua “barbárie”. Uma idéia, enfim fascista, de que é possível extirpar o outro, que é o Mal, da sociedade. Vale lembrar a máxima de Marinetti: “a guerra é a higiene do mundo”.
    Ou pelo menos se não podemos extirpar o mal, podemos elimina-lo do convívio direto, com cercas, muros, e câmeras de vigilância.

    “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, diria Thomas Jefferson. Acho que essa noção de liberdade sintetiza o germe do fascismo que a idéia de razão iluminista carrega. Ora, se vivemos na civilização da razão iluminista, desarmar-se desse medo é também algo assustador, porque significa reconhecer a própria falência dessa civilização. Significa reconhecer que não é possível extirpar o mal, porque ele também existe dentro de você: “nada do que é humano me é estranho”.

    Em resumo, se o medo terminar, termina com ele a própria identidade de nossa civilização. Portanto, pode parecer à primeira vista que desarmar-se desse medo seja algo simples. Quem não acha bom ser gentil ou cordial? Mas desarmar-se de fato é um verdadeiro ato revolucionário.

    Responder

Deixe um comentário